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Bem do Mal (OCC)

//Orígenes — Contra Celso (OCC)//

54. Vejamos, pois, brevemente a questão do bem e do mal à luz das divinas escrituras, e a resposta a dar à objeção: Como Deus podia criar o mal? Como é incapaz de persuadir, de repreender? Segundo as divinas escrituras, o bem em sentido próprio consiste nas virtudes e nas ações virtuosas, e o mal em sentido próprio, em suas contrárias. Eu me contentarei aqui com as palavras do Salmo 33 que confirmam este ponto: “Nenhum bem falta aos que procuram ao Senhor. Filhos, vinde escutar-me, vou ensinar-vos o temor do Senhor. Qual o homem que deseja a vida e quer a longevidade para ver o bem? Preserva tua língua do mal e teus lábios de falarem falsamente. Evita o mal e pratica o bem, procura a paz e segue-a” (Sl 33,11-15). Realmente, a ordem “evita o mal e pratica o bem” não tem em vista nem o bem nem o mal físicos, como alguns os chamam, nem as coisas exteriores, mas o bem e o mal da alma. Pois justamente, aquele que se desviou deste gênero de mal e realizou este gênero de bem por desejo da vida verdadeira chegará a ele; “Aquele que deseja ver dias felizes” (Ml 4,2), em que o logos é o sol de justiça, chegará até eles, libertando-o Deus “do mundo presente que é mau” (Gl 1, 4) e de seus dias maus de que dizia Paulo: “Aproveitai o tempo presente, porque os dias são maus” (Ef 5,16).

55. Mas veríamos, no sentido próprio, que, na ordem das coisas físicas e exteriores, o que concorre para a vida natural é julgado um bem, e aquilo que a ela se opõe é julgado um mal. Desta forma diz Jó a sua mulher: “Se recebemos o bem da mão do Senhor, não deveríamos receber também o mal?” (Jó 2,10). Assim sendo, encontramos nas divinas escrituras esta passagem atribuída a Deus: “Eu asseguro o bem-estar e crio a desgraça” (Is 45,7), e esta outra onde se diz dele: “A desgraça desceu do Senhor até à porta de Jerusalém, ruído de carros e cavaleiros” (Mq 1,12-13). Esses textos perturbaram a não poucos leitores da escritura, incapazes de discernir o que ela designa por bem e por mal. Daí provém sem dúvida a objeção de Celso: Como podia ele criar o mal? Ou então, formulou a objeção por causa de uma explicação simplista destas passagens.

Nós, porém, dizemos: Deus não criou o mal, a maldade, as ações que dele procedem. Pois se Deus tivesse criado o mal verdadeiro, como então seria possível pregar com coragem o juízo, anunciar que os maus serão punidos por suas ações más e em proporção com seus pecados, e que aqueles que tiverem levado uma vida virtuosa ou realizado atos de virtude serão felizes e receberão a recompensa divina? Sei perfeitamente que aqueles que ousam pretender que o mal igualmente provém de Deus alegarão alguns textos da escritura. Mas não podem mostrar uma sequência coerente da escritura. Ela acusa os pecadores e aprova os homens de bem, mas não tem estas expressões em número bastante grande que cheguem a perturbar os leitores ignorantes da escritura divina. Citar aqui estas passagens perturbadoras que são numerosas e as interpretar exigiria uma longa explicação, que não julgo adequada no presente tratado.

Portanto, tomando o termo em sentido próprio, Deus não criou o mal: é uma consequência de suas obras originais e em pequena quantidade comparado com a ordem do universo; um pouco como as aparas em espiral e a serragem de madeira resultam do trabalho original do marceneiro, e como os escombros, os detritos caídos das pedras e da poeira junto às casas parecem trabalho dos construtores.

56. Mas, tomando o termo em sentido impróprio de males físicos e exteriores, concordamos que às vezes Deus cria um certo número que ele utiliza para a conversão. E que haverá de absurdo nesta doutrina? Se entendemos por males em sentido impróprio as penas que os pais, os mestres e pedagogos aplicam àqueles que eles educam, ou os médicos àqueles que eles amputam ou cauterizam para os curar, podemos dizer que o pai faz mal a seus filhos como os mestres, os pedagogos ou os médicos, sem acusar de modo algum aqueles que eles batem ou amputam. Desta forma, a doutrina nada tem de absurdo quando a escritura diz que Deus aplica semelhantes tratamentos para converter e curar aqueles que precisam dessas penas, nem quando diz que “a desgraça desceu do Senhor até à porta de Jerusalém” (Mq 1,12), pois esses males consistem nas penas infligidas pelos inimigos para a conversão; ou que ele castigue “com a vara as iniquidades” daqueles que transgrediram a lei de Deus “e suas culpas com açoites” (Sl 88,33.31); ou quando Deus diz: “Tu tens carvões de fogo; senta-te sobre eles, será teu socorro” (Is 47,14-15). Desta maneira também explicamos: “Asseguro o bem-estar e crio a desgraça” (Is 45,7). Ele cria os males físicos e exteriores para purificar e para elevar os que recusaram a educação por uma doutrina e um ensinamento sadios. Eis o que podemos dizer para responder à sua pergunta: Como Deus podia criar o mal?

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