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Jean-Louis Chrétien – Correlação bíblica

JLChretien2003

uma observação metodológica se impõe sobre o que foi chamado de correlação bíblica. O princípio é esclarecer e explicar a Bíblia pela própria Bíblia, considerando-a como um livro único cujo autor é Deus. Trata-se, portanto, de buscar esclarecimento para uma frase obscura ou ambígua em outras passagens que não o são. Dois ou mais trechos são assim correlacionados. Essas correlações, como se viu, são assimétricas, pois um dos termos é aquele de onde se parte, o interpretado, e os outros, os interpretantes (embora possa acontecer que, em outros contextos, essa relação se inverta). Essas correlações podem ser fortes ou fracas em um duplo sentido. Na compreensão, uma correlação é tanto mais forte quanto mais próximos forem o conteúdo e o objeto das afirmações assim relacionadas, e às vezes ela se impõe como evidente. Quando Orígenes aproxima Lucas 12,49 do agraphon (ou seja, uma palavra atribuída a Jesus por certas tradições, mas que não pertence à Escritura): “Quem está perto de mim está perto do fogo”, ou da frase do profeta Jeremias comparando a palavra de Deus a um fogo (Jr 23,29), a correlação é forte. Quando ele a relaciona com os três modos possíveis de cozinhar o sacrifício de reparação segundo o Levítico, a correlação é fraca, mesmo que dê origem a uma interpretação profunda e bela que será evocada mais adiante. Por extensão, uma correlação é forte quando se repete e é retomada com insistência por um exegeta após outro, tornando-se uma constante da tradição interpretativa (ou de um ramo dela); é fraca quando é rara ou totalmente singular, e só foi feita por poucos autores, ou mesmo por um único. Esses dois sentidos de força e fraqueza das correlações não se sobrepõem em direito (um intérprete genial poderia fazer correlações muito justas nas quais ninguém havia pensado assim), mas é altamente provável, desde que exista uma arte de ler (e somente nessa condição), que elas se sobreponham frequentemente na prática. Algumas correlações fracas (nos dois sentidos) são feitas visivelmente apenas para atender às necessidades da causa, e de uma forma totalmente circunstancial, ou mesmo ao bel-prazer da fantasia. Mas nunca se deve excluir a possibilidade, que é da liberdade do espírito e do poder de certos leitores, de que uma correlação fraca em extensão, ou mesmo inédita, produza uma inteligência nova e luminosa de um texto e se revele, portanto, forte em compreensão, podendo até mesmo fundar uma nova tradição de leitura.

Daí resulta que uma tipologia das interpretações coincide, pelo menos em parte, com uma tipologia das correlações, e que a escolha de certas passagens como interpretantes para o que se pretende elucidar já nos encaminha para uma interpretação determinada, mesmo que esta comporte diversas possibilidades.

Por fim, é também possível distinguir correlações materiais e correlações formais. Assim, podemos nos perguntar o que é esse fogo que Jesus veio lançar sobre a terra e escolher como interpretantes outras frases bíblicas sobre o fogo (correlação material) ou, ao contrário, perguntar-nos o que liga as frases em que Jesus diz que veio para cumprir tal ou tal missão e escolher como interpretantes outras frases com a mesma forma (correlação formal). Muitos autores comparam Lucas 12,49 com Mateus 10,34: “Não vim trazer a paz, mas a espada”, de tal forma que, citando de memória, acabam por fazer dessas duas palavras uma única afirmação composta. É o caso, entre outros, de Pascal, cujo tom violento é muito diferente do tom pacífico de Orígenes: “A guerra mais cruel que Deus poderia trazer aos homens nesta vida é deixá-los sem a guerra que Ele veio trazer. ‘Eu vim trazer a guerra’, disse Ele, ‘e como instrumento dessa guerra vim trazer o ferro e o fogo’”. Antes dele, o mundo vivia nessa falsa paz.”] Veremos outros exemplos. Nada impede, evidentemente, que se utilizem simultaneamente esses dois tipos de correlações. Orígenes, por sua vez, interpretando Lucas 12,49, permanece na maioria das vezes, como a exegese antiga, nas correlações materiais.

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