NOTHOMB CREATIO
Paul Nothomb — TÚNICAS DE CEGO — CRIAÇÃO
Veja-se a investigação sui generis deste pensador do que denomina “Bíblia das Origens”, os primeiros 10 capítulos da Bíblia. Seu conhecimento da língua hebraica juntamente com primorosa reflexão pessoal oferece a possibilidade de uma totalmente nova interpretação do Gênesis.
TÚNICAS DE CEGO Da Criação ao dilúvio, a Bíblia das Origens conta poucas páginas, cerca de um centésimo da totalidade do que em linguagem cristã se denomina o “Antigo Testamento”.
A Bíblia das Origens não nos fala do passado como a Bíblia histórica, nem do futuro como a Bíblia profética, mas do presente. Do presente que em nós subsiste, apesar de nossa triste “condição humana”, de nossa prodigiosa “natureza” da qual ela nos ajuda a lembrar-nos.
No livro do Gênesis, três relatos da Criação provenientes, segundo a crítica, o primeiro e o terceiro da fonte “elohista” (Deus aí denominado Elohim) e o segundo da fonte “jeovista” (Deus aí sendo assinalado pelo tetragrama YHWH), se sucedem em uma ordem que não aquela de suas prováveis redações, mas que tem sua razão de ser: - O RELATO DITO DOS SEIS DIAS DA CRIAÇÃO (Gn 1,1-2,3); - O RELATO DITO DO JARDIM DO ÉDEN (Gn 2,4-3,24) - a notícia biográfica de Adão (Gn 5,1-5).
O “ente” — de ontem, de hoje, de sempre — se encontra a princípio, vimos, em hebraico na sigla YHWH impronunciável e intraduzível que nomeamos “Deus” por hábito e comodidade. E é ele que preside não somente à “concepção” de nossa verdadeira “natureza” mas o psicodrama que põe em cena para nossa informação o relato assim dito “ingênuo” do Jardim do Éden. Ele aí preside mas depois desta “concepção” que é inteiramente sua obra, ele disto não é o autor mas o espectador, como veremos. E dão devemos jamais esquecer nem esta presença soberana no início, nem esta ausência, esta reserva não menos soberana em seguida, se queremos compreender o relato capital e a “Bíblia das Origens” em geral. Pois ela forma um todo. Um todo coerente, apesar da inversão cronológica que faz preceder no texto o relato do Jardim do Éden do relato da Criação em Seis Dias.
Em tradução, estes dois relatos que abrem a “Bíblia das Origens” parecem, senão pouco compatíveis entre eles, pelo menos muito diferentes por sua abordagem do mesmo evento fundador. Mas mostraremos que no essencial eles se completam perfeitamente, o mais recente se revelando ao exame muito precioso para interpretar sem arbitrariedade os traços mais “mitológicos” do mais arcaico, especialmente no que concerne a “natureza” do Homem. Nós o analisaremos portanto em conjunto, em paralelo, a partir do texto hebraico, nossa única referência. — “O Livro do Princípio” (título hebreu do Gênesis, vide Bereshith) se transformou na Septuaginta em “Livro do Gênesis”. Gênesis deriva da raiz grega comum às noções de “devir” e de “engendrar” que a noção de “Criar” no sentido bíblico justamente exclui (vide gênese e genesis).
Empreendendo a tradução latina da Septuaginta, e a comparando com versão hebraica original, São Jerônimo, descobriria pelo menos um outro erro literal tão grave na versão grega da “Bíblia das Origens”. Mas como ela reforçava a interpretação moralizante do conjunto, já tradicional no judaísmo e ainda acentuada no cristianismo, ele não fará que assinalá-la en passant sem ousar corrigi-la. Pelo contrário crerá restabelecer integralmente a distinção dos dois verbos, que a Septuaginta tinha confundido, traduzindo o primeiro por “creare” (genesis) e o segundo por “facere” (poiein).
Na Vulgata latina, obra de São Jerônimo no século III de nossa era, que se tornaria a versão oficial da Igreja romana antes de ser declarada infalível pelo Concílio de Trento, o hebreu BR' é traduzido por “creare” e o hebreu 'SSH por “facere” (“criar” e “fazer” nas bíblias em português).
Mas curiosamente o estudo etimológico nos ensina que “creare”, contração do latim “crescere” (“crescer”) deriva da mesma raiz sânscrita “kar” que “facere”, ao passo que as raízes hebraicas BR' e 'SSH não tem qualquer relação.
