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KOLAKOWSKI (LKCE) – ANGELUS SILESIUS, MANIQUEÍSMO E NEOPLATONISMO

LKCE

Uma tal interpretação da mística de Silesius – utilizando o esquema de uma tríade atemporal em que Deus faz surgir de si seu oposto, uma espécie de anti-Deus, para finalmente realizar sua Divindade ao reabsorvê-lo – não serve como chave geral para decifrar o “Querubim Peregrino”. Uma contradição persiste, mas não a original – a esperança de deificação de um ser finito – que toda mística, e até mesmo toda forma de pensamento religioso, adota conscientemente.

Existe um conflito entre duas tendências irreconciliáveis. Uma delas integra o mal-individualidade no modelo de uma exteriorização do absoluto que se anula. A outra, expressa nos textos citados, vive toda experiência da individualidade como o mal absoluto, uma espécie de excrescência patológica. Ela espera, através da abnegação completa da vontade, pela imobilidade e extinção das forças da natureza, restituir ao homem sua identidade primordial e perdida com a divindade.

Ambas as variantes pressupõem a extinção da individualidade, expressando o desejo de “consumir-se em Deus” (II, 172) e a convicção de que o indivíduo separado é fundamentalmente estranho ao “todo Divino” (“O isolado não tem nada em comum com o todo” – VI, 46). Ambas pertencem à tendência “gnóstica” ou “oriental” da mística. A diferença reside em uma interpretação estática ou dinâmica do dualismo primitivo: o todo versus o indivíduo (e não o todo versus a parte), que não coincide com a oposição secundária entre mundo espiritual e material, já que o mundo individualizado compreende tanto corpos quanto almas.

A interpretação dialética é mais rica, pois torna inteligível o ato de se tornar estranho a si mesmo pela individualização, ou seja, explica a inelutabilidade da obra da criação. Na interpretação estática, essa criação é incompreensível se não se admite um dualismo fundamental e primordial do Ser, em sua acepção maniqueísta. Na interpretação dialética, o movimento do amor teopático está, de certa forma, em conformidade com a ordem da natureza, constituindo uma fase de um processo necessário, cuja fase anterior — o nascimento do mundo, o aparecimento do mal-individualidade — também é necessária para que se cumpra o destino do próprio Deus. Pode-se, então, atribuir uma “razão de ser” à existência humana, que, por ser distinta, continua a ser o elemento “mau” do ser; a humanização de Deus ganha um sentido: “Deus se torna o que eu sou agora, assume a minha humanidade: porque antes eu fui Ele, foi por isso que Ele o fez.” (V, 259).

Na interpretação estática, ao contrário, o “lado mau” do Ser, o mundo das coisas finitas e passageiras, não pode ter sua razão de ser em Deus; elas são simplesmente seu contrário e não podem ser unidas à sua existência como estágio “evolutivo”; devem, portanto, formar um segundo princípio, anti-divino, do mundo. Nesse ponto de vista, o homem se vê diante da alternativa: Deus-terra, e decide seu destino por uma escolha livre. O mundo, assim concebido, é dilacerado entre forças antagônicas e irredutíveis: o mal é tão primordial quanto o bem, e não há razão que, em referência ao bem, explique sua presença. Este é um mundo autenticamente maniqueísta, ao contrário do anterior, onde, como na metafísica de Scot Erígena, o movimento de retorno, eliminando a diferenciação das coisas, abrange igualmente o mundo inteiro que, assim como havia caído junto com o homem para fazer Deus ascender, retorna, também, sob a condução do homem, a uma divindade mais alta. Enquanto no mundo maniqueísta existe uma escolha (“Tu te tornas Deus, se amas a Deus, e terra se amas a terra” — V, 200 42), no mundo dialético, o movimento real só pode ser um, e já está inelutavelmente prejulgado pela natureza do Ser (“Queira ou não queira, temos que ser eternos” — V, 235). Neste segundo mundo, o conjunto dos seres rejeita seu pluralismo ilusório para se unir ao Ser primordial; no primeiro, o homem tem o poder de se purificar de sua natureza decaída, mas a catarse subsistente após essa purificação não desaparece, mas subsiste como mundo da pluralidade, hostil a Deus.

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