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JEAN-LOUIS CHRÉTIEN – INTELIGÊNCIA DO FOGO

- JLChretien2003*

Este livro se propõe a estudar de forma ordenada as respostas humanas a uma palavra de Jesus, no caso, a uma única frase, que no grego dos Evangelhos contém doze palavras. Pode parecer estranho, ou de uma erudição muito especializada, que um livro tenha como objeto apenas doze palavras. Não seria mergulhar numa minúcia prolixa, ou seja, reunir duas degradações da palavra? Por isso, é preciso dizer desde já por que e como esse projeto faz sentido, e como a aparente exiguidade do objeto é a de uma incisão, uma incisão que vai ao mais profundo, talvez ao coração, da palavra humana e da existência humana, por mais fino que sejam o fio e o corte dessas doze palavras. Pois essa incisão não é feita por nós sobre elas, mas por elas sobre nós, se as ouvirmos.

Qual é essa frase? *“Eu vim lançar Fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!”* Lucas, em 12,49, é o único evangelista que no-la transmite. Essa palavra sobre o fogo arde ela mesma de uma evidência enigmática. Evidência imperiosa de uma frase à beira do grito (consegue-se imaginá-la dita como um murmúrio?), na qual Jesus Cristo diz sua missão e sua relação com ela no tempo, sua impaciência por já ter vindo e ainda não ter cumprido aquilo para o qual veio. A tensão entre *já* e *ainda não* é a da existência cristã apenas porque foi primeiro a do próprio Cristo. Uma frase em que Jesus diz o que veio fazer é, obviamente, independentemente do que possamos pensar ou Crer sobre ele, de importância capital.

Mas a evidência da importância dessa frase é ao mesmo tempo uma evidência enigmática, pois esse “fogo”, mesmo recorrendo ao que a Sagrada Escritura diz em outros lugares sobre as chamas (e isso é rico e variado), pode ser entendido (e o foi) de muitas maneiras, inclusive opostas. Um exegeta recente, Claus-Peter Marz, começa seu balanço das interpretações dizendo que essa frase é uma das mais difíceis de entender nos Evangelhos e uma das mais controversas em sua interpretação. O que resulta disso? Como dizia Santo Agostinho da Palavra de Deus em geral, essa palavra é um espelho. Muitas vezes queima os mansos de mansidão, tornando-os mais mansos ainda; muitas vezes queima os violentos de violência, tornando-os mais ásperos ainda. Mas como esse espelho é o da Palavra de Deus, e não o instrumento de nosso narcisismo, acontece que ele queima os mansos de violência e os violentos de mansidão, e não nos mostra nossos traços, mas nosso futuro ou nossa vocação, muitas vezes apesar de nossas expectativas e de nossa boa ou má vontade.

O caráter enigmático dessa palavra de Jesus aprofunda ainda mais a urgência do apelo que ela nos dirige: diante do enigma de uma frase que, ao dizer a missão de Jesus, concerne, ao menos em potência, todo homem (para isso basta que ele possa ser o Salvador), eu me torno nu de uma nudez como nenhuma outra. Pois só posso responder à instante pergunta que ela me lança, como diz lançar o fogo, com todo o meu ser, um ser que justamente só vem a ser inteiro, e todo nu, na própria resposta que dá a tal enigma, e não exercendo um poder prévio. O enigma desnuda. Desnuda também aquele que o recusa, que gostaria de fugir para debaixo da terra, cobrir-se de todo tipo de carapaças ou máscaras (inclusive a do sábio, daquele que sabe o sentido de todas as palavras antes mesmo que sejam ditas), pois é preciso sentir-se nu e exposto para tentar esconder-se e proteger-se. Esse é o caso de grande parte (mas só de uma parte!) da Chamada exegese “crítica”, onde a única coisa imune a qualquer crítica é o próprio exegeta, assim como seus controles remotos pré-fabricados, escondido que está atrás de montes de fichas e glosas como Adão decaído, para não ter que responder à pergunta de Deus que lhe pergunta: *“Onde estás?”*, e: *“Quem és?”*, ou, fazendo-o com menos sucesso que Ulisses diante do Ciclope, apenas para dizer: *“Ninguém — não sou ninguém, mas sou doutor em ciências religiosas, semiótica e psicologia profunda, em universidades cujos professores não questionam a eminente superioridade internacional.”*

O que é a palavra, de fato, só sabemos respondendo-a, e o que é a Palavra de Deus, só sabemos respondendo a Deus ao responder-lhe, o que implica sempre o movimento abraâmico de deixar o lugar onde estávamos e, portanto, o que éramos. E o que é o fogo, como o que ele pode, de onde saberíamos senão da queimadura? Da queimadura recebida, da queimadura fugida, da queimadura desejada. Os que a receberam, por terem deixado o fogo aproximar-se e alcançá-los, perguntam-se como viver uma vez queimados, sabendo que não pode ser de forma alguma como antes, e buscam saber o que exatamente o fogo quis deles, e até onde o querá. Os que a fugiram, às vezes a qualquer custo, gostariam que tê-la evitado não fosse ao mesmo tempo fugir do fogo, e condenam-se a residir no frio e no gelo, que também queimam, de um modo que não esperavam. Os que a desejam já ardem desse próprio desejo, e também conhecem o fogo, como desde essa íntima transformação em que seu ser pouco a pouco se torna combustível. Mas essas queimaduras são pessoais, e a palavra que fala a partir delas, ou seja, a partir de uma relação nossa com o fogo, seja qual for sua natureza, também o é. O que não significa que ela caia na autobiografia vulgar, nem que a todo momento arredonde a boca para dizer *eu*.

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