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A ALMA HUMANA DO CRISTO, ESPOSO DA IGREJA E DAS ALMAS (COP)

*Henri Crouzel – Orígenes e Plotino (COP)*

Capítulo III: Alma do Mundo

A Alma do Mundo plotiniana contém em si todas as almas, ao mesmo tempo unidas e distintas. Em Orígenes encontramos uma representação análoga sob uma forma mais respeitosa da pessoa, a da união conjugal, conforme ao sentido da personalidade, tanto divina quanto humana, que perpassa toda a revelação judaico-cristã e culminará numa noção precisa com as controvérsias trinitárias e cristológicas dos séculos IV e V. De fato, o esposo e a esposa são “dois numa só carne”. A unidade e a dualidade ou multiplicidade coexistem constantemente em Orígenes como em Plotino. Aparecem tanto na imagem de Cristo e de seu Corpo, compreendendo numerosos membros, quanto na da união conjugal que une Cristo tanto à Igreja quanto a cada uma das almas fiéis.

O que representa então a palavra Cristo? O Verbo sozinho ou toda a realidade de Cristo, Deus e homem? Na maioria das vezes, é este segundo sentido que prevalece: a humanidade de Cristo é visada em primeiro lugar, o Verbo sendo compreendido indiretamente pela “comunicação de idiomas”, ou seja, aplicando-se a Deus tudo o que é dito do homem e reciprocamente. Orígenes tem perfeita noção disso, como mostra no Tratado dos Princípios o capítulo dedicado à Encarnação do Salvador. O esposo é portanto primeiramente Cristo em sua humanidade preexistente, unida ao Verbo de Deus por uma união que a coloca “sob a forma de Deus” pela intensidade de sua caridade, encarnando-se depois da falta de sua esposa para reencontrá-la e redimi-la. Em metade dos casos, a kénose é atribuída por Orígenes à alma de Cristo, como também por sua Paixão ela é o instrumento da Redenção.

O que designa então o Corpo com seus membros e a esposa? Vimos acima o Corpo representar o conjunto da Criação. Um fragmento sobre João restringe esse significado à “essência racional”, ou seja, ao conjunto das almas humanas e angélicas. De modo que exclui radicalmente qualquer interpretação pelagiana ou semipelagiana, ele enfatiza que esta última não pode gerar por si só os “bens”, as “virtudes práticas e contemplativas”, a menos que os receba de outro, como uma mulher que dá à luz. Essa “essência racional” é a Igreja, cuja vocação é reunir nela todos os homens. Mas como a Esposa-Igreja não tem “nem mancha nem ruga”, alguns textos parecem restringi-la aos perfeitos, às “almas que chegaram à perfeição e que todas juntas compõem o corpo da Igreja”. Porém essa interpretação está longe de ser a única. Não só a Igreja é esposa, mas a mesma palavra é aplicada a cada alma “que pela simplicidade da fé e pela pureza de seus atos é encontrada incorrupta e virgem”, expressão que não se refere apenas à integridade da carne, mas também à “integridade da alma” que segue a conversão. Ela não significa que o cristão nunca teve mancha, mas que agora está sem mancha, nem que não teve as rugas do “velho homem”, mas que agora não as tem mais.

Voltando à imagem do Corpo, o Contra Celso representa toda a Igreja de Deus com os membros desse corpo, os fiéis, “animada” pelo Filho de Deus, assim como a alma vivifica e move o corpo que sem ela não poderia ser movido vitalmente. Assim o logos - não se trata aqui da alma humana de Cristo - move a Igreja e cada um de seus membros. Mas isso se aplica também de maneira extrema e insuperável à alma de Jesus, que não está separada do Filho Unigênito e do Primogênito de toda criatura. A ela mais que a qualquer outra se aplica a frase paulina: “Aquele que se une ao Senhor é com ele um só espírito”.

Para Orígenes, seguindo uma tradição judaico-cristã atestada já pela homilia Chamada Segunda Carta de Clemente aos Coríntios, escrita no século II, a Igreja é anterior à Encarnação. Na hipótese favorita da preexistência das almas, ela desde o início coincidiu com o conjunto das “inteligências” preexistentes, aquelas que se tornarão, após a queda - situada também nessa preexistência - anjos, homens ou demônios. A alma humana de Cristo foi criada com elas, mas foi unida desde sua criação ao Verbo de Deus. Ela “nunca esteve separada do Filho Unigênito”. Estava “em Deus e na plenitude” divina; tinha a “forma de Deus”. A passagem da qual é extraída essa última afirmação mostra claramente nela o Esposo da Igreja da preexistência: “Aquele que produziu no princípio aquele que é segundo a imagem - como estando sob a forma de Deus - fez-o macho e a Igreja fêmea, concedendo a ambos um único 'segundo a imagem'”. A distinção entre o Verbo, Imagem de Deus, e o homem, inclusive aquele que está unido ao Verbo, apenas feito “segundo a imagem”, ou seja, segundo o Verbo, é um dos poucos pontos de vocabulário aos quais Orígenes permanece sempre fiel. O marido da Igreja preexistente não é portanto diretamente o Verbo - ele o é indiretamente por “comunicação de idiomas” -, mas o homem a quem ele se uniu, pois este último é como as outras criaturas racionais “segundo a imagem” ou “imagem da imagem”.

Mas a maioria das inteligências preexistentes peca e a unidade da Igreja se rompe: muitas delas deixam então o lugar das almas, essa “Jerusalém celeste” que se confunde com o “seio do Pai”. “E o Senhor que é o marido deixou por causa da Igreja o Perto de quem ele estava quando estava sob a forma de Deus, deixou também sua mãe, pois ele também era filho da Jerusalém do alto, apegou-se à sua esposa caída aqui embaixo e eles se tornaram então dois numa mesma carne. Pois por causa dela ele se tornou carne.”

Antes da Encarnação situa-se o tempo de preparação, o Antigo Testamento, onde a pequena noiva Igreja, o antigo Israel, é educada pelas visitas dos “amigos do Esposo”, anjos, patriarcas e profetas, que despertam e mantêm nela o desejo do Esposo. Às vezes também nas teofanias, pelas visitas do próprio Esposo, sob forma angélica ou humana, ou seja, em sua alma que, não tendo pecado, conservou sua forma primitiva humano-angélica. Mas a vinda da própria Encarnação permanece “como por espelho, em enigma”, pois a Esposa não possui completamente o Esposo. Ela o possuirá perfeitamente na ressurreição quando, segundo a parábola dos Convidados às núpcias, o Pai unirá definitivamente seu Filho à humanidade divinizada, como Orígenes expressa num texto magnífico.

Se a Igreja é esposa, o mesmo ocorre com todos os membros fiéis da Igreja, como já dissemos. Assim o Comentário sobre o Cântico dos Cânticos, muitas vezes com ordem, às vezes num certo desarranjo, explica a Esposa em cada versículo, primeiro segundo um desses significados, depois segundo o outro. Assim como a Alma plotiniana do Mundo contém em si todas as almas, ao mesmo tempo unas e distintas, do mesmo modo a Esposa de Cristo é ao mesmo tempo a Igreja e as almas fiéis, unidas enquanto membros da Igreja e partilhando sua qualidade, mas no entanto distintas. A Igreja é o conjunto dessas almas unidas por sua união ao Esposo, Cristo-homem, e através dele ao Cristo-Deus.

Outro paralelo poderia ser feito quanto à origem da alma humana de Cristo. Segundo Plotino, é a Inteligência que engendra a Alma do Mundo e nela todas as outras almas, numa processão que se confunde com sua conversão para a Inteligência. A criação da alma humana de Cristo é concomitante à das “inteligências” preexistentes e é como elas obra do Pai e do Filho, sendo este último ao mesmo tempo o agente como colaborador do Pai e o modelo, pois ele é a Imagem segundo a qual anjos e homens foram criados. Mas essa alma está desde o início mergulhada no Verbo e se torna de certo modo Verbo, como o ferro mergulhado no fogo se torna fogo. Essa comparação, muitas vezes repetida depois, exprime entre o Verbo e a alma ao mesmo tempo unidade e dualidade: o ferro mergulhado no fogo permanece ferro, mas se o tocamos sentimos os efeitos do fogo. Há portanto aí uma analogia com a conversão da Alma do Mundo para a Inteligência. Mas para Orígenes a alma humana de Cristo possui completamente o Verbo, não sob uma forma diminuída: “nessa alma é preciso Crer que o próprio fogo Divino repousa substancialmente, esse fogo do qual os outros tiram um pouco de calor”. Ela está “em Deus e na plenitude”. Mas só nos apresenta dele uma versão atenuada, uma “sombra”, porque não somos capazes de receber o Verbo de outro modo.

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