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PLARD (HPAS) – ANGELUS SILESIUS, PESSIMISMO DA EXISTÊNCIA

HPAS

Mas Silesius junta a este otimismo da essência um pessimismo da existência que o opõe a São Tomás de Aquino, por exemplo, para quem o valor mais alto de cada criatura lhe vem de sua existência concreta posta por Deus. Parece quase, em Silesius, que a passagem da essência à existência é uma queda; ele não buscou, em todo caso, explicá-la, e confessa francamente que ignoramos a causa desta segunda criação, a do mundo real (IV, 126): não sabemos por que Deus saiu de si mesmo, ou seja, do ciclo de conhecedor e conhecido que englobava o “*mundus idealis*”, para criar as coisas no tempo. Por aí entrou no mundo uma parte de não-ser, que aliás não altera sua existência em Deus, e nem mesmo a atinge; pois ela flui no tempo e com o tempo e se aniquila finalmente para não deixar lugar senão ao Ser:

O Mundo não passa. Este mundo é passageiro. O quê? Ele não passa, É apenas a escuridão que Deus quebra nele.

Die Welt vergehet nicht. Schau, dise Welt vergeht. Was? sie vergeht auch nicht Es ist nur Finsternuss was Gott ai jhr zerbricht (II, 109).

Mas não há mais coisas puras deste nada, e, nesta Medida, o mundo é mau — pois o mal é, no pensamento de Silesius, como no de seus autores, uma privação de ser, pelo menos no que concerne à natureza. Sua falsa esplendor arrasta o homem no tempo e o desvia de Deus: sua beleza torna-se um perigo para ele se ele se apega a ela e não sabe fazer dela um caminho para Deus (II, 114; III, 102). A aparência atual do mundo é, portanto, equívoca: é feita de luz e trevas:

As horas do dia. No céu está o dia, no abismo está a noite, Aqui o crepúsculo: feliz quem sabe vê-lo!

Die Tageszeiten. Im Himmel ist der Tag, im Abgrund ist die Nacht, Hier ist die Demmerung : wol dem ders recht betrachtl (IV, 92.)

É ao homem, dotado de discernimento, que cabe separar a luz das trevas, encontrar Deus no mundo, purificar a essência do acaso: “É preciso que o acaso se vá” (I, 274), tanto nele quanto no mundo, e se o mundo é escuridão, noite, o homem verá ainda resplandecer nele a divina luz:

Um olho que vela vê. O brilho do esplendor brilha no seio da noite. Quem pode vê-lo? Um coração que tem olhos e vela.

Ein wachendes Auge stehet. Dass Hecht der Herrligkeit scheint mitten in der Nacht. Wer kan es sehn? Ein Hertz dass Augen hat und wacht. (V, 12; a aproximar de V, 129.)

Na dualidade de sua aparência atual, a criação é, portanto, para o homem “um cruzamento da eternidade” (V, 27), e de sua resposta à pergunta de Silesius: “Para onde irás?” depende em alguma medida o destino do mundo do qual ele pode ser o salvador, ou que ele pode, ao contrário, firmar em sua separação de Deus. Esta última ideia do papel cósmico da vontade humana pode nos surpreender, mas Eckhart a compartilhava. Teremos que ver como o homem pode salvar o mundo; mas sem mesmo ligá-lo à questão de sua vontade e da graça divina, temos um exemplo marcante em suas relações com o que é o próprio meio do mundo real: o tempo. Parece que o mundo flui nele; e, no entanto, Silesius nega-lhe toda realidade substancial, e mantém paradoxalmente que o homem cria o tempo e o espaço:

O homem faz o tempo. És tu quem faz o tempo; teus sentidos são o relógio; Para a inquietação, e o tempo chega ao fim.

Der Mensch der macht die Zeit Du selber machst die Zeit; dass Uhrwerk sind die Sinnen; Hemstu die Unruh nur, so ist die Zeit von hinnen. (I, 189; cf. I, 185.)

Mais do que uma forma de sua percepção, o tempo aparece aqui como uma forma de seu desejo. Isso porque a duração em que o homem se encontra só tem sentido como possibilidade de duas relações opostas da alma e do tempo: ou a alma converterá o tempo em eternidade; e, de fato, não é sequer uma transformação, pois tempo e eternidade são a mesma coisa, a menos que a febre do homem introduza uma diferença entre eles; ela pode trocá-los no momento em que quiser I, 47; cf. a última estrofe do *Ehrengedächtniss*, e I, 177.. Ou, ao contrário, ela os separará e criará, ao desejá-la, uma diferença real entre eles. É significativo que a mesma palavra: “*Unterscheid*” — distinção — designe o valor de pena ou alegria que as coisas têm para o homem, e o ato pelo qual ele distingue o tempo da eternidade. Pois a “distinção” é o início da vontade própria, que leva o homem a buscar-se sempre a si mesmo, em uma eternidade de insatisfação, um tempo prolongado ao infinito, que é o inferno já neste mundo “*Unterscheid*”. Aproximar I, 38, de I, 47. O tempo criado por este ato é designado como “um tempo eterno no inferno, junto ao diabo”, em oposição à eternidade: V, 74.. O mundo é, portanto, mau apenas quando a vontade do homem dá uma realidade ao seu não-ser; e a vida é boa, finalmente, não em si mesma, mas porque é para o homem uma possibilidade de superar a própria vida e de alcançar Deus; e o tempo é “mais nobre que mil eternidades”, pois nele posso me preparar para Deus (IV, 97, 132; V, 125). É no homem, se formos ao fundo das coisas, que está o centro moral do mundo, de seu tempo, de seu espaço e de sua salvação.

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