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GONDAL (MGTP) – TRATADO DO PURGATÓRIO (MADAME GUYON)

- Apresentação de Marie-Louise Gondal do *Tratado do Purgatório* de Madame de Guyon (MGTP)*

O pequeno livro aqui apresentado reúne, sob um título geral: o purgatório, três escritos de Madame de Guyon (1648-1717) sobre o tema da purificação. O “tratado do purgatório”, reeditado a partir do autógrafo conservado nos Arquivos de Saint-Sulpice, em Paris, é ao mesmo tempo a síntese e a chave. Pareceu sugestivo associar-lhe dois textos mais breves, já editados também, mas que apresentam o interesse de oferecer duas abordagens diferentes sobre o mesmo tema: um fragmento sobre os três modos de purificação da alma e um conjunto de meditações bíblicas sobre o purgatório. Para nós, hoje, que não estamos familiarizados de imediato com um discurso sobre o purgatório, mas que por vezes redescobrimos o sentido de uma purificação, esta associação pareceu capaz de facilitar e enriquecer nossa reflexão. E a pequena coleção Atopia, onde se encontram linguagens diversas, é um bom lugar para oferecer ao leitor textos em que a tensão espiritual por vezes chega ao estranho.

- UMA MANEIRA DE FALAR DO PURGATÓRIO Entregue por Madame de Guyon a Louis Tronson, durante a polêmica do chamado “quietismo”, mas provavelmente escrito muito antes dos eventos que motivaram sua deposição, o pequeno Tratado do purgatório nasce de um pensamento espiritual que, tendo levado a sério a promessa evangélica de “ver Deus” feita à “pureza” (“Bem-aventurados os puros, porque verão a Deus”, diz o Evangelho de Lucas), se vê levado a reexaminar um sistema de pensamentos, imaginações e práticas associadas ao tema do “purgatório” e muitas vezes muito distantes do cerne da fé. O deslocamento operado torna-se então sensível. É esse deslocamento que o dossiê aqui apresentado se propõe a manifestar. E sem dúvida não é inútil medir primeiro a distância que nos separa desse texto. - Um tema ultrapassado?

Um escrito sobre o purgatório corre o risco de parecer hoje duplamente ultrapassado. Primeiro porque não frequentamos mais os caminhos desse lugar mítico do além, esse “terceiro lugar” que, embora próximo do inferno pelo sofrimento experimentado, dele se separa radicalmente porque é na realidade o feliz vestíbulo do paraíso, lugar de purificação onde as almas devem aperfeiçoar sua acomodação ao “esplendor da luz eterna viva” que alegrava os eleitos de Dante no final de sua viagem. Depois porque não há mais hoje, em nosso caminho, água refrescante para beber para “ser puro e subir às estrelas”, já que as estrelas estão ao alcance de nossas mãos e nosso destino se decide entre homens. Consequentemente, não encontramos facilmente em nós a que poderia corresponder essa necessidade de purgação ou purificação tão exigente e tão essencial que a vida, na maioria dos casos, não basta para preenchê-la e que ainda precisa, no além, de um preâmbulo de aclimatação à Divindade. Em tempos em que a ambição parece por vezes se limitar a uma certa qualidade de vida que um ter substancial — e de qualquer forma ilusoriamente considerado ilimitado — pode a priori assegurar, como receber essa linguagem de uma pureza um tanto inquieta, sem torná-la pura quimera?

Tornado praticamente fora de uso, exceto para o historiador, um discurso sobre o purgatório é também inevitavelmente suspeito. Seria outra coisa senão um desvio em um catolicismo centrado na culpa e no medo do castigo e esquecido do amor? Diversos trabalhos recentes de historiadores (J. Le Goff, J. Delumeau, M. Vovelle) mostraram com erudição como se organizou, entre o século XII e a reação salutar da Reforma no século XVI, esse prodigioso sistema de trocas entre os vivos e os mortos prometidos à bem-aventurança. Ajuda mútua misteriosa em que as orações, missas e doações dos vivos serviam para aliviar as almas do purgatório e apressar sua entrada no paraíso, enquanto estas, apaziguadas pela preocupação dos vivos, lhes traziam em troca, como notava Thomas More (1478-1535), “o antídoto preventivo contra o veneno mortal desses portadores de peste que querem fazer Crer que o purgatório não existe”[]. Nessa memória mútua dos vivos e dos mortos estabelecia-se uma espécie de equilíbrio em que a misericórdia divina finalmente encontrava sua eficácia: a felicidade eterna de todos aqueles que, por mais fracos e pecadores que fossem, haviam acolhido a mensagem da salvação. Mas como entrar nesse sistema de significações, uma vez que ele é questionado em sua raiz: a própria possibilidade de uma sanção eterna?

- Uma questão humana central Essas razões teriam sido amplamente suficientes para dissuadir da reedição desses escritos de Madame de Guyon sobre o purgatório se não continuássemos a perceber nesses textos uma vibração distante e muito elevada, como aquela que por vezes prolonga as notas sustentadas de uma flauta ou o lamento do violino sob o arco. Nesse século XVII em que o sistema do purgatório perde terreno sob o golpe da reforma e talvez também no alvorecer de uma nova cultura, não é principalmente um motivo de ajuda mútua e caridade por essas almas em espera que inspira Madame de Guyon, como ainda foi o caso no início de seu século para Etienne Binet, por exemplo (1569-1639)[]. Mesmo se, para ela, os sufrágios não são inúteis aos defuntos, é um motivo diretamente teologal que sustenta sua meditação: Deus é Deus e ninguém pode vê-lo sem morrer para si mesmo. Ninguém, sobretudo, pode alcançar o término de seu desejo de se unir a Deus sem ser purificado nesse próprio desejo, não tanto pelo sofrimento quanto pelo amor preveniente que vem ao seu encontro. Forte dessa certeza que é a de sua fé cristã, Madame de Guyon não se detém em considerações sobre o “mérito” ou o “resgate”. Não se trata de uma reivindicação de justiça humana diante de Deus, nem muito menos de relação mercantil para arrancar-lhe seus dons, tampouco de equivalência a fornecer para pagar um pedágio no limiar da bem-aventurança. Tudo gira em torno de um duplo movimento: o de Deus em direção ao ser humano e o, em retorno, do ser humano em direção a Deus. O pensamento se expressa em termos de linhas de força, eixos, direções. Universo em movimento de reunião ou repulsão mais que imobilidade de espaços exteriores uns aos outros. Trata-se de “atração” da parte de Deus, de “inclinação”, de “tendência” para Deus, de “instinto de reunião a Deus”, de “passividade” de nossa parte, ou ao contrário de afastamento e rejeição. E o lugar desses movimentos é a própria substância do ser, sua natureza de ser criado, criado como “referido” a Deus, mas dispondo todavia da capacidade, ou de se rebelar contra essa relação “necessária”, sem deixar de dela depender, ou de a ela consentir no reconhecimento de um amor. Estamos na ordem da criação e da consumação da criação, antes de estar na de uma redenção. Ou mais exatamente, a morte em Deus que reconcilia o pecador deixa aberta a necessidade de uma operação mais radical que concerne ao seu próprio ser de criatura, e não apenas à sua condição de pecador. Trata-se, para acceder à união divina, de perder uma certa posição do eu, o que Madame de Guyon, com muitos outros espirituais de seu tempo, chama a “propriedade”. Trata-se de se descentrar, de se perder para encontrar Deus e se encontrar em Deus. Fora disso, o ser permanece em si mesmo, seu desejo e sua vontade se espalham em objetos múltiplos, e o resultado é o exílio. Só o amor, operando a justiça, pode realizar a consumação de que uma “inclinação infinita a se perder em Deus” está em nós como o sinal e o chamado. Mas um amor soberano, o de Deus. Reconhece-se aí um tema familiar a Catarina de Gênova (1447-1510), a ancestral mística de Madame de Guyon e provavelmente aquela de quem está mais próxima. Como para Catarina, cujas palavras foram depois consignadas em um Tratado do purgatório [], não há, para Madame de Guyon — mesmo se isso é dito com prudência — julgamento após a morte particular (o julgamento é reservado ao fim dos tempos), mas a alma de algum modo se julga a si mesma diante da luz divina, reconhecendo o que nela se opõe à pureza divina e se dispondo alegremente a se deixar purificar pelo fogo do amor. - Quando o além reflete no aquém

O tratado de Madame de Guyon apresenta além disso, me parece, uma originalidade própria. Seguindo o fio de seu pensamento, se é rapidamente reconduzido do além para o aquém. É de uma purificação atual que se trata para certas almas. E a própria terminologia escorrega: Madame de Guyon fala logo das almas de purgatório e não mais das almas do purgatório. Sem querer majorar o alcance dessa variação, pode-se ver nela um indício textual, escapado ao correr da pena à Medida que o pensamento se elabora, e que não é sem significação. A passividade, ou mais exatamente a “*passivedade*” do purgatório, não se vive apenas, segundo a autora, em um além-morte, pode-se viver já nesta vida. É em sua vida terrestre que alguns são levados a sofrer tais purificações do amor-próprio. E é na passividade das grandes penas, em que a alma se sente ao mesmo tempo movida e rejeitada, que se opera essa metamorfose radical preparando para a união a Deus. Nesse sentido, o aquém é o lugar da Vida Eterna começada. A morte não é negada, mas sua fronteira se torna por vezes porosa, quando se coloca do ponto de vista da ação divina e da fé.

Seria excessivo e sem dúvida inoportuno apressar-se a opor uma pesada argumentação antropológica ou teológica para restaurar uma fronteira intransponível entre a vida e a morte. Madame de Guyon não quis negar nem a realidade da morte, nem seu caráter decisivo para a liberdade humana que fixa, nesse ponto de suspensão, nosso rosto de eternidade. Ela atenuou todavia sua angústia trazendo para o desenvolvimento histórico de nossa vida as escolhas e experiências que formam nosso ser definitivo. Se nada está jamais totalmente jogado antes da morte, seria ao contrário impensável que nada pudesse se jogar na vida plenamente consciente. Ao remeter para o além o decisivo da existência, arriscar-se-ia a perder a própria ponta do cristianismo que traz no coração de sua mensagem a atualidade da relação a Deus e de sua operação. A mística, mais uma vez, ao devolver o homem à sua própria liberdade e ao mistério de sua liberdade, devolve-o sem dúvida à possibilidade de crer.

- O trabalho da fé sobre as representações**

É por isso que me agrada reler esse curto tratado do purgatório como uma tentativa bastante genial e talvez sem equivalente para repatriar e aclimatar, em uma esfera em que a liberdade humana pode se exercer, a consciência avivada da grandeza e da pureza divina que havia contribuído para o desenvolvimento dessa noção do purgatório. Mas, como presa na armadilha de um sistema em que o ser humano acabava por não intervir senão em “reparação” no além, Madame de Guyon aprofunda as noções de criação, liberdade, pureza e amor de Deus até o ponto em que elas recuperam uma pertinência para nossa vida terrestre, abrindo enfim uma perspectiva para a verdadeira condição humana. Deus não tem duas maneiras de agir, uma para o aquém, que seria fechar os olhos, e outra para o além, que seria um despertar de suas exigências. Deus atrai no aquém e — sem dúvida — no além. E essa atração puxa para o centro de nosso ser, move nosso desejo, transforma nossas penas, abrindo diante de nós o infinito da vida nele. É isso que é “purificador”, que pouco a pouco, se nos deixamos fazer, nos coloca no diapasão de sua vontade, nos “justifica” de sua Justiça, nos ajusta a ele. Todo o problema é compreender essas vias que não são as nossas, preocupados que estamos com nosso cumprimento, sem bem saber em quem podemos nos cumprir.

De repente, as penas mais comuns ou mais estranhas da vida podem tomar outra cor. Ou as aumentamos ao nos obstinarmos em desconhecer a face oculta de nossa própria insatisfação, ou encontramos nelas uma via para aquele que é o oriente de nosso desejo e que só pode cumpri-lo. O “purgatório”, finalmente, não seria uma questão bem começada no aquém, e uma boa nova sobre nós mesmos? É assim, pelo menos, que se pode ler, parece, esse curto tratado do purgatório.

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