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Prisão de Jesus Cristo (Canteins)

CanteinsMSC

A prisão de Jesus Cristo, “dado” por Judas, não deixa de intrigar. Durante seus anos de vida pública, Jesus se deslocou sem qualquer impedimento, acompanhado por um grupo de discípulos desarmados; enfrentou seus piores inimigos, a autoridade sacerdotal judaica, penetrando no Templo, discutindo com ela, indo e vindo da Galileia à Judeia, espalhando o escândalo de curas milagrosas repetidas; em suma, gozou de total liberdade de ação, normalmente inconcebível. Diz-se aqui e ali que teve de se esconder, atravessar o Jordão, mas, no geral, não sofreu restrições em seus movimentos: sua entrada “oficial” em Jerusalém, verdadeiro desafio à autoridade vigente, atesta isso. Ora, esse território que ele percorre em todas as direções é um território ocupado; ocupado pelo exército mais eficiente que existe, o exército romano, que controla todos os pontos nevrálgicos, as praças-fortes etc. É difícil conceber que, nessas condições, o corpo sacerdotal judeu e a força romana só tenham conseguido assegurar a pessoa de Jesus graças à traição de Judas. Parece que Jesus Cristo era inapreensível, que escapava por natureza a qualquer captura, em suma, que nenhuma mão humana era capaz de apreendê-lo.

Como admitir, senão, que judeus e romanos precisassem que Judas lhes designasse Jesus5 beijando-o em sua presença (Lc XXII.48)? Seus serviços de inteligência eram tão deficientes? Jesus não se mostrara suficientemente em todos os lugares para que sua descrição já estivesse há muito estabelecida? Jesus não agia clandestinamente, e as autoridades estavam bem informadas. Temos prova disso, aliás, com as dificuldades de Pedro: ele é reconhecido e estaria seriamente ameaçado se não negasse Cristo três vezes. Isso mostra que as pessoas tinham olhos para ver e que poderiam igualmente reconhecer Jesus. No entanto, tudo se passa como se ele fosse desconhecido, invisível, senão desencarnado, como se seu corpo não fosse suscetível de apreensão, como se uma prisão manu militari em boa e devida forma fosse impossível. O beijo de Judas é menos insólito pelo descompasso absoluto entre o ato de amor aparente e o ato de ódio e traição ocultos do que pelo recurso a meios tão ostensivamente inúteis em tempos normais. Tudo se passa, mais uma vez, como se o beijo de Judas tivesse o poder não apenas de identificar, mas também de corporificar Jesus, de recondicioná-lo à norma dos mortais comuns. Deve-se deduzir que, sem o beijo delator, Jesus teria continuado a pregar impunemente a boa palavra — isto é, segundo seus inimigos, a provocar escândalo e semear perturbação — por todo o tempo que julgasse conveniente? Essa é a questão paradoxal que podemos colocar, diante da incompreensível incapacidade de judeus e romanos de capturá-lo. A ordem reinava em Jerusalém, e seria absurdo que um agitador qualquer se permitisse iniciativa comparável: seria preso imediatamente e, conforme o caso, eliminado sem mais formalidades. Então? Jesus era intocável? Os meios de coerção ordinários eram inoperantes contra ele? Sua pessoa estava sob proteção divina que o protegia do aparato judiciário humano? São perguntas sem resposta. Um véu de mistério cobre o episódio de Judas, e seria vão esperar levantá-lo. Tudo o que se pode notar é que o beijo de Judas agiu como se quebrasse um encanto. A partir daí, os eventos tomaram, por assim dizer, um rumo “normal”: Cristo é preso, interrogado, escarnecido, os poderes vigentes funcionam como sempre fizeram e farão: repassam o caso, esforçam-se para isentar sua responsabilidade, traem sua imensa inadaptação funcional à realidade, manifestam sua incompreensão e incompetência etc. Jesus Cristo não deixa de ser julgado, condenado sem motivo à pena capital mais infamante, entregue à maldade e à estupidez da multidão; em suma, seu destino — uma vez engrenada a máquina social — é o de qualquer vítima humana esmagada pelo poder público. Mesmo que revistam importância particular pelo destaque excepcional tomado a posteriori6 por sua personalidade, o processo e a condenação de Jesus estão isentos de qualquer fato sobrenatural: Jesus não escapa miraculosamente a nenhum dos ultrajes e torturas que são o lote dos condenados; apenas alguns deles — a coroa de espinhos, as vestes reais, a inscrição INRI na cruz, que zombam de sua pretensa realeza — lhe são específicos. A própria crucificação, Jesus a compartilhará com dois outros condenados, dois criminosos a quem todos acham conveniente infligir a pena capital ao mesmo tempo que a ele. Todo o dispositivo administrativo, político e religioso de repressão parece, portanto, suspenso ao beijo de Judas. Antes, nada funciona bem, o braço secular está paralisado, inoperante, ineficaz; depois, tudo volta à ordem, o dispositivo funciona, a roda da História recomeça a girar: os grandes exercem seu poder, e os pequenos o sofrem. O intervalo cristão interrompera sobrenaturalmente o curso das coisas, o mundo, por um momento, contivera a respiração; o beijo de Judas o pôs novamente em movimento.

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