Embora begardos suspeitos de heresia tenham declarado em Estrasburgo, em 1317, pertencer à seita do Livre Espírito, não se pode falar de uma seita do Livre Espírito, por mais frouxa que fosse sua contextura, assim como não se pode fazê-lo para os adeptos do Novo Espírito que precedem os do Livre Espírito no mesmo caminho & que são conhecidos por 97 proposições que Albert, o Grande, relata, segundo suas declarações, em sua Determinatio… super articulis inventae heresis in Recia dyocesis Augustensis (1270). Se os fervorosos do Livre Espírito eram irmãos & irmãs, é porque eram animados pela comum inspiração que a leitura de certos versículos dos Evangelhos ou das Epístolas lhes ditava; não afirmava São Paulo: “O Senhor é o Espírito, & onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2 Cor. 3, 17) & “Se sois guiados pelo Espírito, não estais debaixo da lei” (Gál. 5, 18)? Não eram doutos inclinados à especulação, mas não negligenciavam tirar proveito & apoio de afirmações lidas ou ouvidas sem se perguntarem mais a fundo se interpretavam exatamente formulações por vezes paradoxais: Eckhart não ficou sem sofrer deduções semelhantes. O que aliás contava antes de tudo para os adeptos do Livre Espírito era a experiência exaltante de ser habitado & agido pelo Espírito na & para a vida perfeita; essa convicção lhes servia de disciplina: só tinham que se abandonar sem discernimento às impulsões sentidas interiormente que eram puras, já que vinham do Espírito & eram recebidas em almas puras (I João 3, 9; Tito 1, 15), inteiramente aniquiladas, vazias de tudo &, em particular, do pecado; homens bons & perfeitos, estavam unidos imediatamente a Deus & nada tinham, portanto, que fazer com a mediação de uma Igreja que não era a do Espírito, mas a da carne & dos clérigos; o que essa Igreja ensinava & mandava era sem valor: era inútil orar, confessar-se a padres, pois Deus falava diretamente & se podia falar diretamente com ele & pois, sendo perfeito, nada se tinha a pedir-lhe nem nada a perdoar; a prática dos sacramentos unitivos era supérflua quando já se estava unido a Deus, & sua administração não devia ser reservada a padres, leigos perfeitos eram dignos de realizá-los; não convinha tampouco ter culto aos santos, pois cada um podia ser tão santo, senão mais santo que eles. Mas esses irmãos do Livre Espírito não se situavam apenas fora da Igreja, eles se situavam também fora do cristianismo; acreditavam ser Deus por natureza, &, já deificados, não precisavam que Deus se humanizasse &, assim como a Encarnação, a Redenção não tinha sentido & valor para aqueles que, como eles, eram de uma perfeição que os tornava sem pecado & os igualava a Cristo: “christianitas est fatuitas”, diziam alguns deles. Tudo isso ia obviamente de par com um comportamento quietista extremo; como nada devia obstar às moções interiores de Deus, esses irmãos viviam voluntariamente na ociosidade & na preguiça; iam, isolados ou em pequenos grupos, errando, mendigando seu pão por amor de Deus segundo sua fórmula, &, como esse quietismo recusava toda lei & toda disciplina exteriores, acontecia que esse antinomismo degenerasse em amoralismo apesar do aviso de São Paulo: “Não façam dessa liberdade um pretexto para viver segundo a carne” (Gál. 4, 13). Se a situação no Império & na Igreja levava a pôr sua esperança numa conversão, um retorno à simplicidade da perfeição evangélica vivida interiormente & à sua mensagem de pobreza, havia também no que os irmãos do Livre Espírito recomendavam & faziam germes de desordens sociais & espirituais que eram conhecidos pelo menos desde os Valdenses, por exemplo, & se manifestavam mesmo em fraticelos. Uma Igreja hierarquizada, rica, não indiferente à sua situação & à sua ação temporais não podia tolerar tal fermentação: em 1311, o concílio de Vienne condenou os irmãos do Livre Espírito com as Beguinas & os begardos &, em 1369, o imperador Carlos IV publicou um edito que agravou sua repressão & sua perseguição. — Religiosos que permaneceram na obediência não podiam deixar de denunciar os irmãos do Livre Espírito como pseudoespirituais, adeptos de uma falsa liberdade. Assim Tauler que, depois de compará-los a “uma ferramenta esperando que seu mestre queira trabalhar, pois lhes parece que, se fazem algo, são um obstáculo às operações de Deus”, acrescenta: “Querem ser tão despojados que não querem pensar, nem louvar a Deus, nem ter, nem saber algo, nem viver, nem pedir, nem desejar algo; pois tudo o que podem pedir, eles o têm & pensam ser assim pobres em espírito porque estão sem vontade própria; abandonaram toda propriedade. Querem também ser livres da prática da virtude & não querem obedecer a ninguém, nem ao papa, nem ao bispo, nem ao pároco; querem ser livres de tudo o que é do domínio da Santa Igreja. Dizem publicamente que, enquanto o homem se esforça por virtudes, ainda é imperfeito & nada sabe da pobreza em espírito nem da liberdade do espírito… Consideram-se acima de todos os anjos & de todo mérito humano & acreditam que não podem nem crescer em virtude nem cometer pecados. O que a natureza deseja, podem, segundo sua ideia, fazer livremente, sem pecado porque alcançaram a inocência suprema & não lhes é imposto nem mandamento nem lei; obedecem ao que sua natureza deseja para que o espírito possa permanecer em uma liberdade sem obstáculos” (cit. Delacroix, p. 123). Ruysbroeck não se cansa de culpar os desvarios desse iluminismo & desse angelismo em As Doze Beguinas como em As Núpcias Espirituais, em As Sete Clausuras como em O Espelho da Salvação Eterna; há, para ele, heresia, pois esses adeptos do Livre Espírito declaram: “Somos Deus por natureza; em nosso ser eterno, éramos sem Deus; pelo esforço de nosso livre-arbítrio saímos do ser absoluto para aparecer no mundo; Deus não sabe, não quer nada sem nós; criamos com ele o universo. Não cremos em Deus, não o amamos, não o oramos, pois isso seria confessar que ele é outra coisa que nós. Toda diferença pessoal é abolida no seio da Unidade divina. É preciso se libertar de toda lei, não se preocupar nem com conhecimento nem com amor” (Delacroix, loc. cit.). Porque algumas dessas articulações podem ser aproximadas de passagens de Eckhart, Suso não deixa de mostrar ao Selvagem do Livro da Verdade (cap. VI, Obras, p. 451) todo o erro daqueles que assim se reclamam de seu mestre sem o compreender em verdade &, em sua Vida (cap. XLVIII, Obras, p. 278), ele se levanta contra “certos insensatos que dizem que é preciso chafurdar por todos os pecados, se se quer chegar ao perfeito desapego”. — Na T G, as alusões àqueles que professam tais convicções libertárias são muito frequentes & sua reprovação, por não ser de tom veemente, não é menos constante & precisa. Mas, como ignoramos a data da redação da T G, pode-se perguntar se ela visa aqueles que se chamavam a si mesmos os irmãos do Livre Espírito ou bem aqueles que, sem serem propriamente seus, tinham sido conquistados por suas ideias, ou mesmo aqueles em quem & por quem essas ideias sobreviviam & cresciam depois que as perseguições inquisitoriais puseram fim a esse movimento como tal. Se, a partir de aproximadamente 1450, se fala menos de condenações de irmãos do Livre Espírito em países germânicos, seu movimento pode ter desaparecido em suas expressões exageradas, mas pode prosseguir naqueles que pretendem ser espíritos livres; mais difuso, não é, para a T G, menos nefasto nessa descendência do que era anteriormente; aqui como lá, é — para retomar o título de um escrito de Calvino de 1545 — “a seita fantástica & furiosa dos libertinos que se nomeiam espirituais”.