Jean-Louis Chrétien – O ameaçador do fogo

JLChretien2003

Em primeiro lugar, é notável que Orígenes reconheça o que há de ameaçador, inquietante e violento nas palavras de Jesus sobre o fogo (Lc 12,49). Esse “fogo” não deve ser entendido imediatamente, como farão outros exegetas, como um fogo de alegria ou como a própria doçura do amor. Certamente, esse fogo provém do amor, mas o amor tem sua ira, o amor tem seu ciúme, o amor tem sua violência e sua exigência. A própria expressão “lançar fogo”, sobre a qual se discute se é ou não um hebraísmo ], enfatiza, em todo caso, uma espécie de veemência do gesto incendiário. É assim que Orígenes reinterpreta vários castigos e purificações da Bíblia hebraica à luz desta palavra de Cristo. Mas ele não é homem de contemplar com alegria ambígua, como se fosse um espectador tranquilo, a ira de Deus abatendo-se sobre os pecadores. Esse fogo só me diz respeito se for, ou puder ser também, um fogo para mim. Se há ameaça, é em mim que esse caráter ameaçador deve ressoar primeiro. Daí o destino que Orígenes dá a esse fogo que é lançado sobre a terra.

Um curto-circuito impressionante leva Orígenes da dimensão cósmica em que essa frase é pronunciada para uma dimensão de interioridade e intimidade em que essa terra se torna eu, ou algo de mim, o que há em mim de terreno. Este curto-circuito é o relâmpago do Espírito, é o caminho mais curto para a ativação espiritual do texto. Só aquele sobre quem ela cai como um raio pode ouvir a palavra de Deus como um trovão, um raio que liberta a liberdade prisioneira, ou pelo menos pode fazê-lo. Caso contrário, ocupar-se disso não passa de um passatempo comparável a palavras cruzadas subtis. Este estilo de ativação foi inaugurado com grandeza por Filão, o Judeu. Reduzir isso a uma espécie de “espiritualismo” vago é não compreender o que está em jogo.