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Merejkovsky – Jesus Desconhecido (II.3)

Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935

**PARTE DOIS**

**VIDA DE JESUS DESCONHECIDO**

**III. OS DIAS DE NAZARÉ**

I

“Jesus não era cristão, mas judeu”, declara um grande historiador cristão antigo (I). “Jesus era judeu e judeu ficou até o derradeiro suspiro”, afirma um pequeno historiador judeu autêntico (2). De certo, é um paradoxo. Se não há laço algum entre o Cristo e o cristianismo, de onde vem este e onde colocá-lo na história universal? O Filho do Homem — Filho de Israel não une em si, como o cisne, os dois elementos, terra e água — a terra do judaísmo e a água do universalismo? Que é um “paradoxo”? Uma verdade às vezes tão surpreendente (paradoxos significa: terrível, espantoso), tão inverossímil que parece mentira. Ora, somente em linguagem “paradoxal” podemos exprimir bem as coisas do Evangelho, porque o próprio Evangelho é o Paradoxo por excelência, uma verdade demasiado espantosa e inverossímil para nós.

II

Não há, com efeito, no rosto vivo de Jesus algo de autêntico, não só historicamente, como ainda religiosamente, que os cristãos “batizados” são incapazes de compreender e mesmo ver n'Ele, enquanto que os judeus “circuncisos” imediatamente observam, compreendendo ainda menos do que os cristãos? “Quem é ele?” Qual a primeira resposta que, a esta pergunta, acode ao espírito, a primeira impressão visual daqueles que o viram face a face, senão: “É um judeu, um circunciso”? O sangue da circuncisão assinala o homem com uma marca inapagável, mais inapagável do que a da água do batismo. Infelizmente, para nós, cristãos, não é um paradoxo, porém o resultado de nossa própria experiência religiosa. É mais fácil reconhecer um cristão, esquecendo que foi batizado, do que um judeu, esquecendo que foi circuncidado. Olvidamos sempre que Jesus é judeu; entretanto, não é sem razão que um heleno puro, um pagão da véspera, Lucas, no-lo lembra com tanta insistência e obstinação: “Quando chegou o oitavo dia e se devia circuncidar o menino de acordo com a lei de Moisés, eles o levaram ao templo para apresentá-lo ao Senhor, assim como está escrito na lei do Senhor” (2, 21-24.). Que significa isto? Os judeus evidentemente têm razão a seu modo, quando dizem que Jesus, não somente transgredira a Lei, mas a destruíra e abolira. Os sacrifícios, as purificações, o sábado, a circuncisão, onde estão no cristianismo esses pilares da Lei? “O antigo está prestes a ser abolido”, diz São Paulo e faz o que diz, abolindo o Antigo Testamento com o Novo.

III

Entretanto, eis aqui: “Eu vim para cumprir a Lei”. Cumpri-la, destruindo-a, é ainda um “paradoxo”, não mais do Evangelho, porém do próprio Jesus. Para “cumprir a Lei”, destruindo-a, precisava agir, não de fora, violentamente, mas de dentro, naturalmente, como uma semente que, crescendo, destrói o invólucro, a fim de dar muitos frutos e realizar, assim, a lei interior da vida. Ora, para isso, era preciso aceitar a Lei exterior e nela penetrar inteiramente, ser pelo seu nascimento, não só um homem, porém ainda um verdadeiro filho de Israel, “o Judeu dos Judeus”, “o Circunciso dos Circuncisos”, cumprindo em si mesmo os mistérios do Pai antes dos mistérios do Filho. É com demasiada facilidade e demasiada frieza que cortamos o fio que une o homem Jesus a Israel, esquecendo o quanto ele tocava seu coração e quanto sua ruptura — a cruz talvez de toda a sua vida oculta — lhe foi mortalmente dolorosa. Neste sentido, o paradoxo: o Cristo não é um cristão é uma verdade inverossímil.

IV

“Ele amava demais a Israel, UMERMGATEEN”, segundo a palavra maravilhosamente profunda da epístola de Barnabé (3). Nós o compreenderíamos, se fôssemos capazes de compreender que também nunca houve nem jamais haverá homem semelhante a ele em Israel; como ele, seu povo é único. Jesus só podia nascer em Israel; é verdade também que só em Israel podia ter sido morto; talvez outros povos o não tivessem matado, porém não o teriam reconhecido, enquanto que Israel logo o reconheceu, embora como se reconhece um possesso: “Que há entre nós e tu, Jesus de Nazaré? Vieste para nos perder? (Mc., I, 24.)”. Israel da “cerviz dura” poderá renegar Deus; está todo em Deus, como o peixe na água. O primeiro dos povos a orar ensinou os outros povos a orar. Nunca houve, não há e nem haverá orações mais belas do que os Salmos. Foi essa atmosfera de oração que Jesus respirou do primeiro ao derradeiro suspiro, desde o “Abba” do berço até o “sabaclitani” da cruz.

V

Aos seis anos, principiou, sem dúvida, a frequentar, como todos os meninos, a escola, beth-hasepher, pertencente à sinagoga de Nazaré (4). Sentados no chão, em volta do rolo da Lei — que se lia dos quatro lados —, os meninos repetiam em coro com suas vozes finas, acompanhando o mestre, hasan, o mesmo versículo das Escrituras, até o aprenderem de cor (5). O pequeno Jeschua juntava a esse coro sua vozinha infantil.

VI

Desde os doze anos, ia com as pessoas grandes à sinagoga, a “casa comum”, Keneseth, a fim de orar e de ouvir a pregação ou a leitura das Escrituras, o targum, ambas em aramaico. O interior da sinagoga era muito simples: uma grande sala de paredes lisas e caiadas, com dupla ordem de colunas, bancos de madeira para os fiéis e um alto estrado de pedra, arona, tabuta, orientado para o Templo de Jerusalém, isto é, em Nazaré, diretamente para o sul. A porta, por trás da tabuta, também estava voltada para o sul e ficava aberta, a fim de deixar entrar a luz. Sobre a tabuta, um pequeno armário baixo de dois batentes, humilde imagem da Arca da Aliança, onde se conservavam os pergaminhos da Lei, enrolados em dois paus roliços. Diante do armário, pequena mesa sobre pés altos, com uma estante para a leitura. O leitor cobria a cabeça com uma longa faixa de lã riscada, cobertura dos nômades, para lembrar que Israel, caminhando pelo deserto do mundo para o reino do Messias, é um eterno nômade (6). Sentado em um banco, em face da tabuta, o pequeno Jeschua podia ver, pela porta aberta, atravessar pelo mar dourado dos campos de Jezrael, seu futuro caminho, que levava a Jerusalém, ao Gólgota.

É provável que estudasse também em casa os rolos da Lei, que se encontravam, às vezes, nas mais humildes moradas. Não parece que tenha frequentado as escolas dos rabinos. Ele mesmo nunca foi um “rabino de Israel”, no sentido que se dava a essa palavra nas escolas. “Como esse homem conhece as Escrituras sem nunca as haver estudado?” perguntam com espanto os escribas de Jerusalém (Jo., 7, 15.), sem dúvida porque não tem a aparência de um sábio rabino e sim de um simples aldeão, am-ha-arez, pastor ou pedreiro, “mestre de obras”, naggar. No campo, na rabiça do arado, na oficina, curvados para o banco de carpinteiro, em casa, durante a ceia, como em viagem, sob a tenda, por toda a parte e sempre, os homens estudam a Lei e oram como respiram, agradecendo a Deus cada naco de pão e cada gole de vinho. E o pequeno Jeschua provavelmente repetia três vezes por dia: “Escuta, Israel, schema Iesreel, como todos os judeus haviam repetido antes dele durante dois mil anos e repetiriam ainda dois mil anos depois dele.

VII

Recitava também a oração dos dezoito versículos, Schemone Esre, santa entre todas, que anunciava o próximo reinado do Messias (8). O doce clarão dos fogos sabáticos; o gosto açucarado do vinho pascal, misturado com ervas amargas, no prato que continha o charoseth, o molho da mesma cor avermelhada da argila do rio com que Israel, cativo no Egito, fabricava tijolos; o canto de libertação, o trovejante hallel “que quebra os telhados”, tudo isso é para Jesus agradável ao coração, santo e inolvidável (9). “Desejei tanto comer convosco nesta Páscoa”, dirá aos discípulos na noite anterior à sua morte (Lc., 22, 15.). A Páscoa terrestre tem o gosto do reino celeste; desde que tenham provado uma vez essa doçura, nem o homem, nem o Filho do Homem jamais a esquecerão, não só na terra como na eternidade. “Eu não a comerei mais até que ela se realize no reino de Deus (Lc., 22, 16.) ”. Eis porque ele “amava demasiado” Israel e será erguido na cruz como Rei de Israel.

VIII

“Os pais de Jesus iam todos os anos à festa da Páscoa, em Jerusalém. Quando ele fez doze anos, foram a Jerusalém, segundo o costume da festa (Lc., 2, 41-42.)”. Podia-se ir em três dias de Nazaré a Jerusalém, diretamente, passando pela Samaria (10); mas, como os samaritanos consideravam os peregrinos galileus “impuros”, não lhes dando nem água, nem fogo, insultando-os, batendo-os e, às vezes, matando-os mesmo, eles, preferiam fazer um rodeio, mais penoso e perigoso por causa dos bandidos, através das espessas florestas e das montanhas da Pereia. Na tarde do sexto dia, depois de atravessado o Jordão, descia-se para o vale de Jericó, formado por uma profunda depressão do mar Morto, tórrido desde o começo do Nisã, mês da Páscoa, e todo impregnado, como uma caixa de perfumes, do cheiro dos bosques embalsamados. Por isso, se havia dado à cidade que dominava o vale o nome de Jericó, a Perfumada (11). No dia seguinte, de manhã, para subir a Jerusalém, seguia-se um caminho de dois mil côvados, íngreme e sinuoso, entre duas muralhas de rochedos nus, que, empurpurados pelo manganês, pareciam encardidos de sangue. Jesus menino teria podido guardar, gravado no seu coração, o nome fatídico desse caminho, a “Ladeira do Sangue” (12).

IX

Caminhava-se o dia todo, de manhã à tarde. E, de súbito, numa curva brusca da estrada, perto da aldeia de Betfagé, no monte das Oliveiras, acima da vetusta e pobre Jerusalém, com seu anfiteatro de casas de eirado, amontoadas, grisalhas como ninhos de vespas, surgia a massa esplêndida de ouro e mármore do Templo, rebrilhando como uma montanha de neve sob o sol. “Hallel! Hallel! Halleluia! Nossos passos se detêm Às tuas portas, ó Jerusalém!” cantava o coro dos peregrinos, recitando o Cântico dos Degraus de David. “Levanto meus olhos para as montanhas: De onde me virá socorro?… Jerusalém está rodeada de montes E o Eterno rodeia seu povo Desde agora e para sempre. Que a paz seja contigo, Israel!” O pequeno Jeschua devia misturar a esse coro sua voz infantil, repetindo com toda a alma o salmo de David, seu pai: “Como tuas tendas são amáveis, ó Eterno dos exércitos! Minha alma se consome e enlanguesce Nos vestíbulos do Eterno; Meu coração e minha carne erguem Seus gritos de alegria para o Deus vivo! O próprio pássaro encontra abrigo E a andorinha um ninho onde pôr os filhos!… Teus altares, ó Eterno dos exércitos, Meu Senhor e meu Deus!… Felizes os que habitam em tua casa, Porque um dia em teus vestíbulos vale mais que mil fora. Hallel! Hallel! Halleluia! (13)”

X

“Tendo passado os dias da festa, quando voltavam, o menino ficou em Jerusalém e os pais não deram por isso. Pensando que estivesse com seus companheiros de viagem, caminharam o dia todo e o procuraram entre os parentes e amigos. Mas, não o tendo encontrado, voltaram a Jerusalém, a fim de buscá-lo (Lc., 2, 43-45.)”. Para esquecer e perder assim um filho amado, uma criança de doze anos, em numerosa multidão, em que podia haver malvados, para não pensar nele uma só vez o dia inteiro, não indagar: Onde está? Que lhe aconteceu? era preciso que os pais estivessem habituados às suas fugas, resignados a vê-lo emancipar-se, escapulir, viver vida própria, independente, distante e incompreensível. Muitas vezes já desaparecera e fora encontrado. Encontrá-lo-iam ainda esta vez. Tinham terminado a etapa da jornada. Haviam descido, pois, de Jerusalém a Jericó, talvez mesmo tivessem transposto o Jordão e começado a subir as serras da Pereia, quando, depois de haverem buscado em vão, primeiro entre os parentes e amigos, enfim, durante a primeira noite, por todo o acampamento galileu, compreenderam, sem dúvida, que se não tratava mais de uma de suas fugas costumeiras: não iriam encontrá-lo mais? (14). Que não sentiram, regressando a Jerusalém pela Ladeira do Sangue e, na cidade, procurando-o por todas as ruas, examinando a figura dos transeuntes com inquietação e angústia crescentes, esperando e desesperando a cada instante de revê-lo? Como o coração da mãe foi torturado, que lágrimas não derramaram seus olhos durante esses três dias — três eternidades, ao pensar que jamais reveria seu filho!

XI

“Ao fim de três dias, encontraram-no no Templo, sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e fazendo-lhes perguntas; e todos os que o ouviam estavam maravilhados com a sua inteligência e as suas respostas (Lc., 2, 46-47.)”, Sentado, segundo o uso das escolas, no meio da tríplice fila dos discípulos, aos pés dos velhos sábios de Israel, no magnífico mosaico de mármore de várias cores, na sinagoga das Pedras de Obragem, Lischat Ilagasit, na extremidade do pátio interno do Templo, onde se reuniam algumas vezes os membros do Sinédrio, os doutores e escribas célebres de Jerusalém, o menino Jesus os escutava; interrogava-os e respondia-lhes (15). “Vendo-o, eles (José e Maria) ficaram espantados e sua mãe lhe disse: meu filho, por que fizeste isto conosco? Eu e teu pai temos estado a procurarte, cheios de cuidado. E ele lhes respondeu: por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devia estar na casa de meu Pai? Mas eles não compreenderam o que ele lhes dizia (Lc., 2, 48-50)”. Confessemos com franqueza: para o nosso coração terrestre, essas primeiras palavras não terrestres que os homens dele ouviram parecem de insuportável crueldade; delas se exala como que o frio dos espaços interplanetários; elas queimam o nosso coração humano com uma queimadura glacial que arranca a pele como um ferro gelado em que se põe a mão nua. É assim que um filho que ama sua mãe lhe responde? “Por que fizeste isto conosco?” — “Eu fiz o que devia”. — “Nós temos estado a procurar-te, cheios de cuidado…” — “Vosso cuidado não é o meu”. — “Eis aqui teu pai…” — “Não é ele o meu pai”. Por não ter sido dito senão por alusões, não deixa de ser ainda mais cruel. Aquele que amou como jamais ninguém amou, poderia não compreender, não ver imediatamente, pelo simples aspecto dos rostos, o mal que lhes fizera? Então, como se não atirou aos seus braços e não os apertou de encontro ao coração, chorando e pedindo perdão, como choram e pedem perdão as crianças? Apenas o avistaram de longe e mal tiveram tempo de se alegrarem, viram em seu semblante e em seus olhos algo que os “espantou”, os “apavorou”: dir-se-ia que lhes queimara o coração, brotando deles, aquele relâmpago glacial, aquela queimadura do ferro gelado na mão nua que o segurou?

XII

E eis que, de novo, no nosso coração se grava, contra nossa vontade, um Evangelho, não falso, mas secreto.

APÓCRIFO

1

Maria lembrou-se naquele instante que um dia — ao cair da noite — sem saber mesmo se dormia ou estava acordada, um rapazinho em tudo semelhante a Jesus entrara-lhe em casa. Primeiro, tendo provavelmente visto mal o seu rosto, o tomou pelo próprio Jesus, mas logo que ele lhe perguntou: “Onde está meu irmão Jesus? Quero vê-lo”, logo compreendeu que não era ele. Então, o rapazinho se transformou em uma menina, e Maria, julgando-se tentada por um fantasma, um duplo de Jesus, teve tanto medo que se debateu como num pesadelo, louca de pavor. Sem saber quase o que fazia, amarrou o rapaz-rapariga ao pé do leito e correu a procurar Jesus, a fim de compará-los e verificar qual dos dois será o verdadeiro; mas foi em vão: ele e ela eram perfeitamente parecidos. Depois, abraçando-se e beijando-se, os Dois tornaram-se Um. E eis que, de novo no crepúsculo que enchia talvez a sinagoga das Pedras de Obragem, ela procura em vão saber o que ele é. Não teria desaparecido o verdadeiro e não seria o outro que haviam encontrado? E ela teve medo, então, mais medo acordada do que outrora, em sonho. Tudo se confundiu e obumbrou no seu espírito, não distinguindo mais o sonho da realidade. Nada compreendeu e de nada se recordou; vendo o estranho olhar dos olhos familiares, ouvindo o estranho som da voz familiar, sentiu que enlouquecia, não só de medo, mas de dor. “E a ti mesmo uma espada te traspassará a alma”, dissera-lhe uma voz antes dele nascer. Mas ela, então, não sabia quem brandiria o gládio e agora o sabe: será seu Filho. “Aquele que não odiar pai e mãe… — o coração de toda a humanidade, o coração da Terra-Mãe será traspassado por esse gládio do Filho como por um raio glacial.

2

“Ele acompanhou-os e voltou a Nazaré, e era submisso. E sua mãe conservava todas as suas palavras no coração. Jesus crescia em sabedoria, tamanho e graça, diante de Deus e diante dos homens (Lc., 2, 51-52.)”. Isto foi e não foi, isto brotou e se extinguiu como um relâmpago: só ficou a confusa lembrança que se guarda de um pesadelo, quando se desperta. Saiu por um momento de sua submissão e logo a ela voltou; crescera um instante para tornar de novo a ser menino. Parece que nada mudou. Dia após dia, ano após ano, é sempre a mesma coisa: vai à escola, mistura sua voz infantil ao coro das crianças, repetindo com o mestre cada versículo da Lei e este também: “venera teu pai e tua mãe”. Em casa, aprende o ofício de construtor, manejando o martelo e argamassando os tijolos. Leva às pastagens galileias o rebanho de cabras escuras. E, quando volta, sua mãe de longe reconhece o som do seu caniço de pastor que modula os lamentos de Ciniro: “Eles olharão aquele que traspassaram, E soluçarão por ele como por um filho único, E se afligirão como se fosse um primogênito..

3

Sentado num canto escuro da pequena casa de Nazaré, consertava uma feita, à luz triste de uma candeia, as sandálias usadas e, suavemente, suavemente, como as abelhas outonais zumbindo sobre as derradeiras flores, cantarolava um salmo de David, seu pai, o cântico dos que sobem a Ladeira do Sangue: “Eterno, meu coração não se enche de orgulho, Não tenho o olhar altivo, Não procuro as grandezas, Não aspiro coisas inacessíveis, Não constranjo minha alma à calma e ao silêncio. Como a criança que deixou o seio materno, Minha alma está farta dentro de mim (16)”. Havia nesse canto um tom tão triste que a mãe se aproximou do filho e ao seu lado se sentou. Pondo a cabeça dele sobre seu seio, docemente lhe acariciou os cabelos. Queria dizer-lhe alguma coisa, mas não achava as palavras, e por isso ficou silenciosa. Silencioso também, ele ergueu os olhos para ela, sorriu, depois murmurou como na sua primeira infância, quando ainda não sabia falar: — Ma! Fechou as pálpebras devagarinho e elas pareciam tão pesadas que se diria jamais se levantariam. E adormeceu. E sua mãe viu seu rosto resplandecer com um brilho tal que, diante dele, a luz do sol ficava escura. De súbito, tudo o que esquecera lhe voltou ao espírito: o Anjo de vestes níveas e rosto relampejante: Alegra-te, Cheia de Graça! E ela disse como outrora: — Eis-me aqui, sou a serva do Senhor, Que seja feito segundo sua palavra! E disse ainda: — Minha alma magnifica o Senhor, E meu espírito se alegra em Deus meu salvador, Porque ele baixou os olhos sobre sua serva, E eis que de ora em diante todos os tempos me chamarão bem-aventurada, Porque o Todo Poderoso fará por mim grandes coisas. E não foi mais o raio glacial do pavor, porém o raio inflamado da alegria que lhe traspassou a alma como um gládio. Ela compreendeu de repente que seu Filho a amava como nunca pessoa alguma havia amado e que o Todo Poderoso por ela faria grandes coisas. Elevá-la-ia a uma altura jamais atingida por ninguém. Faria de uma serva terrestre a Rainha Celeste, de sua mãe a Mãe de Deus.

XIII

As primeiras palavras do Senhor são de insuportável crueldade, cheias de um amor que parece ódio. Isto é incrível e, por conseguinte, autêntico, conforme à lei geral da crítica evangélica: quanto mais incrível mais autêntico. O próprio Lucas nos dará a entender de onde tirou suas palavras, assim como todo o Apócrifo, o Evangelho não falso, mas secreto, da Natividade e da Infância do Senhor: “Maria conservava todas essas palavras e as repassava pelo seu coração (2, 19.)”. Isto é dito depois do relato da Natividade e repetido depois das palavras incompreensíveis de Jesus no Templo: “Sua mãe conservava todas essas palavras no seu coração (2, 51.)”.

Jesus Desconhecido

É nesse versículo, que não foi certamente repetido duas vezes por Lucas senão intencionalmente, que ele encerra todo o Evangelho da Natividade e da Infância como uma pérola encastoada em indestrutível broche de ouro: a memória do amor é a mais fiel de todas; o coração materno lembra-se eternamente, porque ama infinitamente. Se todo o Evangelho da vida pública do Senhor não é mais do que as “Reminiscências” dos Apóstolos, no sentido que damos à expressão “reminiscências” históricas; todo o Evangelho de sua vida secreta não é mais do que as “Reminiscências” da mãe de Jesus. E por que não acreditar nesse testemunho?

XIV

Este relato sobre O Menino, aos doze anos, que corta a negra noite da vida de Jesus com um clarão deslumbrante, é tanto mais precioso para nós quanto confirma nossas próprias conjeturas — o Apócrifo que, contra nossa própria vontade se grava no nosso coração; A noite foi iluminada por um relâmpago e vimos que trilhávamos o bom caminho sob os reflexos que sua vida pública lança sobre sua vida secreta. Adivinhávamos a verdade, pensando que, para Jesus, é em Nazaré que começa a “Ladeira do Sangue” que leva ao Gólgota, o Caminho da Cruz. Mas, após o súbito clarão, eis que, de novo, entre o segundo e o terceiro capítulos, volta a noite negra, abismo de silêncio, com trinta anos em Mateus, com vinte em Lucas, espécie de queda obscura na amnésia. Ele tinha doze anos de idade”, — ele tinha mais ou menos trinta anos (Lc., 2, 42; 3, 23.). Sobre o que se passou entre esses dois pontos, nem uma palavra. Ora, é precisamente durante esses anos em que todo homem atinge o meio dia da Vida, a virilidade, que o destino do Homem Jesus e, se ele é o Salvador do mundo, o destino da humanidade se decidiu de vez pelos séculos dos séculos. Esse mistério permaneceria indecifrável para nós, se novamente na sua vida pública se não projetassem três fulgurantes raios de luz. Voltaremos mais tarde sobre um deles, a Tentação; falaremos agora dos outros dois.

**XV**

Os três Sinóticos se referem ao encontro de Jesus “com os inimigos do homem, seus próximos”, que se deu provavelmente em Cafarnaum, num dos primeiros dias do ministério do Senhor. Todavia, nem Lucas, nem Mateus ousam dizer o essencial, embotando o gume do “escândalo”. Marcos-Pedro é o único que ousa. Sem dúvida tem mais audácia do que os outros, porque tem mais amor e mais fé. “Jesus entrou em uma casa com seus discípulos, e ali a multidão se ajuntou de tal modo que eles nem podiam tomar suas refeições. Quando seus próximos souberam disso, vieram para se apoderar dele (kratési, agarrá-lo), porque diziam que estava fora de si, EXRSTÊ (Mc., 3, 20-21.)”. “Ele caíra em furor, in furorem versus est”, diz a tradução um tanto rude, mas forte e exata da Vulgata. “Ele perdeu a razão”, diríamos nós. O que isso quer dizer sabemo-lo pelo que aí mesmo se passa, em torno da casa, nessa multidão agitada por ávida e vã curiosidade. “Os escribas, vindos de Jerusalém, diziam: Ele está possesso de um espírito impuro… Ele está possesso de Belzebu, e expulsa os demônios pelo poder do príncipe dos demônios (Mc., 3, 22, 30.)”. Isto dizem seus inimigos estranhos. Seus inimigos “próximos” escutam e aprovam. Um ou dois anos mais tarde, segundo São João, no meio ou no fim de seu ministério, os anciãos de Jerusalém, os chefes do povo, os futuros assassinos do Senhor, ainda o afirmarão: “Ele está possesso de um demônio; ele está fora de si; por que o escutais? (Jo., 10, 20.)”. E, enfim, quando ele perguntar: “Por que procurais fazer-me morrer?” A multidão inteira gritará à sua face: “Tu estás possesso de um demônio (Jo., 7, 20.)”.

**XVI**

É exatamente por essa mesma palavra: “mes-chugge, louco, possesso” que, outrora, o povo apontava, zombando e insultando, os profetas de Israel, nebiim (17). Toda a gente percebe quando um homem está possuído por um espírito, mas ninguém sabe direito que espírito é esse. Uns pensam que é o espírito de Deus e outros, que é o do demônio. Quanto ao Filho do Homem, também não se sabe. Seus “próximos”, que viveram trinta anos a seu lado deviam saber melhor do que os outros. Então, como ignoram? Ora, para que seja precisamente naqueles dias em que todo o povo, vendo seus milagres e sinais, glorificava O Eterno e considerava Jesus como um grande profeta, talvez mesmo o Messias, naqueles dias em que os próprios demônios gritavam: “Nós te conhecemos, Filho do Altíssimo; para que seja mesmo naquele momento que seus próximos decidam agarrá-lo, é preciso que estejam convencidos de terem razão os escribas: “Ele está possesso de um demônio”. Lentamente, durante vinte anos talvez, esse fruto amargo amadureceu na árvore da vida; lentamente se teceu a corda com que se quis amarrá-lo como um possesso; durante vinte anos, olhos, não estranhos, mas próximos e amantes o observaram e o vigiaram. Seus irmãos e suas irmãs cochicham a princípio, à parte; depois, falam cada vez mais perto e mais alto: “Meschugge, meschugge! ” Afinal, decidem-se, para salvá-lo da desgraça e fugir, eles próprios, ao opróbrio, apoderar-se dele pela força, amarrá-lo como um demente e reconduzi-lo à casa, em Nazaré.

**XVII**

“Sua mãe e seus irmãos vieram vê-lo, porém não o podiam abordar por causa da multidão (Lc., 8, 19.)”. “E, ficando fora, mandaram chamá-lo. A multidão estava sentada em volta dele. E disseram-lhe: Tua mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura. Mas ele respondeu: Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? Depois, lançando os olhos sobre os que estavam sentados em volta dele, Ele disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos! Quem quer que cumpra a vontade de Deus é meu irmão, minha irmã e minha mãe (Mc., 3, 31-35.)”. Por trás da multidão, sua mãe ouviu essas palavras: “minha mãe” repetidas três vezes, duas delas em primeiro lugar, porque para ele, nesse caso, sua mãe vinha antes? Certamente ouviu, senão com os ouvidos, ao menos com o coração, e três vezes a espada lhe traspassou a alma. Ela sofreu, porém ele sofreu mais ainda. Nosso coração terreno não pode compreender essa dor extraterrena. Se dois entes divinos se pudessem ferir mutuamente, suas feridas os fariam sofrer assim.

**XVIII**

Que faz a mãe? Por que veio ali? A testemunha mais próxima, Marcos-Pedro, guarda a respeito terrível silêncio. Só no “Apócrifo”, no Evangelho secreto do nosso coração, podemos ler: a mãe veio para se apoderar do filho. Por que isso? Para defendê-lo no último instante, para salvá-lo ou perecer com ele? Ou para, de novo, como outrora em Jerusalém, há vinte anos, verificar com os próprios olhos se é ele mesmo ou se é outro? Ou, ainda, perturbada pelo medo, não sabia em verdade o que fazia, — tinha tudo esquecido? Ou, afinal, lembrava-se e esquecia-se com alternativas? Era ora a luz da Anunciação, ora a noite da amnésia; era ora uma serva terrestre, ora uma Rainha celeste? E será assim toda a sua vida, enquanto não tiver subido até o cimo a Ladeira do Sangue. Somente lá, aos pés da Cruz, abandonada de todos, até de seu Pai, ele não a abandonará e dirá a seu discípulo amado: “Eis a tua mãe”; somente lá ela saberá que ele a amava, não só com o amor terrestre, mas com o amor celeste, como nunca jamais ninguém foi amado.

**XIX**

Eis um dos dois raios de luz e agora, o outro. Segundo os Sinóticos, Jesus deixara seus irmãos e sua mãe antes de seu ministério; mas, segundo João não foi assim. “Mulher, que há entre mim e ti? (Jo., 21, 4.)”. Foi em Caná, na Galileia, que ele dirigiu outra vez à sua mãe essas palavras incríveis, de insuportável crueldade e, contudo, autênticas; e logo realizou, para lhe ser agradável, o primeiro, o mais terno de seus milagres, que parece com ela própria: — o milagre da humilde alegria humana — a mudança da água em vinho. Do mesmo modo que não abandonou sua mãe, não abandonou seus irmãos. Provavelmente no segundo ano de seu ministério, após a segunda Páscoa, quando percorria a Galileia no outono, porque “Não queria percorrer a Judeia, onde os judeus procuravam matá-lo”, “Seus irmãos lhe disseram: Parte daqui e vai à Judeia, a fim de que teus discípulos vejam também as obras que fazes. Quando se quer ser conhecido, não se faz nada em segredo. Já que fazes essas coisas, manifesta-te ao mundo. Porque seus próprios irmãos não acreditavam nele. Jesus lhes disse: Meu tempo ainda não chegou; para vós, o tempo é sempre favorável. O mundo não pode vos odiar, porém me odeia, porque eu presto testemunho de que suas obras são más (Jo., 7, 1-3 7.)”.

**XX**

Essa conversa se deu na Galileia: não seria naquela mesma Cafarnaum, onde, ano e meio antes, os irmãos haviam tentado se apoderar pela força de seu Irmão? Agora, renunciaram a isso. Então, julgavam saber de que espírito estava possesso. Talvez pensem ainda assim, persistam em não crer nele e de nada se arrependam. Estão somente mais calmos, tendo compreendido que não podiam apoderar-se violentamente dele. Antes é que eram sinceros. Agora mentem. Então, iam abertamente contra ele. Agora agem hipocritamente, medrosamente. “Se és o filho de Deus, atira-te daqui abaixo” (Lc., 4, 9.)· É como o tenta Satan. “Se fazes isto, manifesta-te ao mundo”. É como o tentam os irmãos. Procuram apanhá-lo numa armadilha ou só por ignorância o impelem para ela, para essa Judeia, onde já os assassinos o espreitam? Essa teia de aranha com que pretendem agora envolvê-lo vale mais do que a corda com que, então, queriam amarrá-lo? Tudo é obscuro e ambíguo em suas palavras. Uma única coisa é clara: estão fatiguadíssimos uns dos outros e já não podem mais. Viveram vinte anos lado a lado, próximos e, ao mesmo tempo, estranhos, amando-se e odiando-se; suas almas, como corpos amarrados juntos, à força de se esfregarem uma contra as outras, dia a dia, ano a ano, ficaram chagadas como os doentes que permanecem longamente no leito. Nessa conversa de Cafarnaum é que se sente, não só nos irmãos de Jesus, mas nele próprio, a dor dessas chagas de vinte anos.

**XXI**

“Um profeta só é desprezado em sua terra e em sua casa (Mt., 13, 57.) ”. Sabemos pelo Talmude quanto ele foi desprezado na sua grande casa, em Israel: “Se um homem te disser: “Eu sou Deus”, ele mente; “Eu sou o Filho do Homem”, ele se arrependerá; “Eu subo ao céu”, não subirá (18)”. Assim, deviam desprezá-lo em sua casinha de Nazaré e é assim que o desprezam nesse episódio de Cafarnaum. É talvez a milésima alfinetada fraterna: “Manifesta-te ao mundo”; a milésima gota de sangue no corpo do Irmão: “Meu tempo ainda não chegou”. Ontem e hoje, as mesmas alfinetadas, e durante dez anos, durante vinte anos. Serão as mesmas amanhã, e durante dez mil anos, durante vinte mil anos. Esse é o fardo terreno que pesa sobre sua alma não terrena — o tédio dos dias de Nazaré — do “mal infinito”.

**XXII**

“O tédio do Senhor”. Como estas palavras soam de estranho e terrível modo! É possível que o Senhor “se entedie”? Se ele se empobreceu, “se esvaziou” até a morte, segundo a maravilhosa expressão de São Paulo (Fil., 2, 7-8), se humildemente tomou sobre os ombros todos os fardos humanos, por que não teria tomado também esse, o mais pesado, o mais mortal — o tédio? Os dois Adões, os exilados do paraíso, o primeiro contra sua vontade, o segundo voluntariamente, poderiam exprimir o acabrunhamento do exílio melhor do que com essa simples frase: “Eu me entedio”? “Até quando estarei convosco? Até quando vos suportarei?” (Mc., 9, 29.). Isto não quer dizer que Deus se entedia, que está enojado dos homens?

**XXIII**

Encontra-se o mesmo tédio, o mesmo enojamento nessa conversa com os irmãos. Nem calor, nem frio: tepidez. “Assim, porque és morno, eu te vomitarei de minha boca”, dirá o Senhor, falando de tais irmãos — de nós todos talvez? — não mais no tempo, porém na eternidade (Apoc., 3, 16). Nada nessa conversa é preto ou branco, tudo é cinzento como no dia seguinte à negra noite do Gólgota a chuvinha acinzentada lavando o Sangue da Cruz.

**XXIV**

O essencial para os mestres do claro-escuro, como Vinci, Rembrandt e o evangelista João, talvez o maior deles, é pintar fielmente a alma secreta das cores e das linhas, a luz própria a cada época do ano e a cada hora do dia, ou, segundo a pitoresca expressão francesa, a “cor do tempo”. No seu admirável claro-escuro: “O Senhor e seus irmãos”, João parece ter precisamente pintado a “cor do tempo” desses dias de Nazaré que duraram vinte anos — a cor cinzenta-rósea do “tédio do Senhor”, o nevoeiro cinza do tempo misturado à cor, não vermelha, mas rósea como a da aurora rompendo a bruma, sangue que vem, não das “alfinetadas” e sim dos cravos da Cruz, que nós veremos mesmo em Nazaré, porque ali começa o caminho do Gólgota, a Ladeira do Sangue. Parece que todas as pastagens da Galileia, onde soluça melancolicamente o caniço do Pequeno Pastor: “Eles olharão Aquele que traspassaram”, estão envoltas com esse cinzento-róseo em que já ruge a tempestade, como por uma neblina matinal.

**XXV**

Esses irmãos do Senhor, seus “inimigos próximos”, seus verdugos durante vinte anos, quem são? Maus? Não, homens muito bons. Vemos reviver um deles, provavelmente o mais velho, nas “Reminiscências” que Hegesipo escreveu em idade bem avançada, aí pelo ano 70 do século I e que, por conseguinte, remontam ao começo desse século, isto é, ao tempo dos Apóstolos: Desde os tempos de Cristo até nós, ele (Tiago, o irmão do Senhor) foi cognominado o Justo (Diceu)… Foi santificado desde o seio materno (foi Nazareno com Jesus, Mt., 2, 23.), não bebia vinho nem outra bebida embriagante, não comia nada que tivesse vida (carne); a navalha nunca lhe passou sobre a cabeça; nunca se ungira e se abstinha de banhos. Só a ele era permitido entrar no santuário, porque sua roupa não era de lã, mas de linho (vegetalmente puras). Entrava sozinho no Templo (de Jerusalém) e ali ficava de joelhos, pedindo perdão para o povo. A pele de seus joelhos ficara dura como a dos camelos, porque constantemente estava prosternado, adorando a Deus e suplicando o perdão das gentes. Sua justiça eminente fazia com que fosse chamado o Justo e Oblias, que quer dizer em grego baluarte do povo… porque todos acreditavam que só a prece desse santo salvava o povo culpado da cólera de Deus (19). Segundo o testemunho do “Evangelho dos Hebreus”, não foi a nenhum de seus discípulos preferidos, Pedro ou João, nem mesmo à sua mãe, que, depois da ressurreição, o Senhor apareceu em primeiro lugar, porém a seu irmão Tiago (20). São Paulo também não ignora isso (I Cor., 15, 7.). Tal era o amor entre os dois irmãos: a morte não separou o que em vida estivera unido. Talvez porque Tiago fora o primeiro de seus “inimigos próximos” e o último a crer nele, Jesus lhe tenha aparecido, após a ressurreição, em primeiro lugar.

**XXVI**

Seu “Baluarte”, Israel o destruiu com as próprias mãos. Por ter confessado o Cristo diante de todo o povo, Tiago foi posto pelos Anciãos dos Judeus sobre uma das “alas do Templo”, a mesma talvez onde outrora Satan tentara o Senhor, e dali precipitado no vale do Cedron (21). Assim morreu o mártir-verdugo de seu Irmão. Caindo no abismo e ouvindo o vento sibilar nos seus ouvidos, terá enfim compreendido o soluço do caniço do Pequeno Pastor de Nazaré: Eles olharão Aquele que traspassaram. Não teria o gemido do vento traspassado seu coração com esse supremo soluço? O “Baluarte” desabou e a cólera de Deus caiu sobre Israel: Jerusalém foi destruída. “E eis que a vossa morada vos será deixada vazia (Mt., 22, 38)”.

**XXVII**

Tiago, o avô, foi mártir. Seus netos, Tiago e Zaqueu são confessores, milagrosamente escapos às fauces do leão (Domiciano), assim como o sabemos pelas “Reminiscências” desse mesmo Hegesipo. Os netos, de tanto trabalhar, têm calos nas mãos. O avô, de tanto rezar, os tinha nos joelhos. Entre essas calosidades, está toda a santa vida laboriosa da Sagrada Família (22). Somente sobre uma árvore com Israel e sobre um ramo como a casa de José podia desabrochar uma Flor Divina como Jesus. Eis até aonde vão suas raízes e de onde é preciso arrancá-las. Se uma planta nova arrancada da terra com as raízes tivesse sentimento, sofreria com Jesus.

**XXVIII**

O homem custa a compreender que Deus às vezes exija dele um amor que parece cheio de ódio, impiedoso: “Aquele que não odiar pai e mãe…” Talvez o Homem Jesus também custasse a compreender. Parece, entretanto, que, durante esses vinte anos não fez mais do que aprender isso. “Quem está perto de mim está perto do fogo, Quem está longe de mim está longe do Reino”, isto ele sabe: só se pode entrar em seu reino através do fogo. Ele “amou demasiado” suas duas casas, a grande — Israel, e a pequena — a de Nazaré, e as consumiu com o fogo do seu amor, “esvaziou-as”: “Eis que vossa morada vos será deixada vazia”. Seu principal tormento, o começo de sua Cruz, não é que os homens o atormentem, mas que ele os atormente, amando-os, perca-os para os salvar: “Aquele que tiver perdido a vida por minha causa a salvará”. É terrível para um homem amar assim, mas não pode ser de outro modo, como o fogo não pode deixar de queimar.

**XXIX**

Mas o que há de mais espantoso, de mais terrível na sua vida é que ele sofre como nunca ninguém sofreu, quis mesmo sofrer, porque seu Pai quer e a vontade do Pai é a sua vontade. De longe, a Cruz atrai Jesus como o ímã atrai o ferro. A princípio leve como a sombra fugidia de uma nuvem de verão sobre as montanhas da Galileia, cobertas de brancas margaridas; depois, de Nazaré ao Gólgota, ficando espessa e pesada até que sobre ele se detém a sombra da Cruz.