Boaventura — Itinerário da mente para Deus
1 Após termos considerado a Deus nos seus atributos essenciais, devemos elevar o olhar de nossa inteligência à contemplação da beatíssima Trindade. Destarte, os dois Querubins do Propiciatório serão colocados um junto do outro (cf. Êx 25,19-20).
Assim como o Ser é o princípio radical de todos os atributos essenciais de Deus e seu nome nos conduz ao conhecimento dos demais, assim o Bem é o principalíssimo fundamento sobre o qual devemos apoiar-nos para contemplar as processões.
2 Olha, pois, e observa que o soberano Bem é de tal modo perfeito, que nada melhor se pode pensar. E semelhante Bem é impossível concebê-l'O retamente como não existente, porque ser é absolutamente melhor que não ser. Por isso, para termos uma ideia exata do sumo Bem, é preciso concebê-l'O como trino e uno (Cf. S. Anselmo, Proslogion, caps. 3, 4, 5 e 15).
De fato, diz-se que “o bem tende, por própria natureza, a difundir-se” . É, pois, próprio do sumo Bem difundir-se sumamente. A suma difusão, porém, deve ser, necessariamente, atual e intrínseca, substancial e pessoal, natural e voluntária, livre e necessária, indefectível e perfeita. Por isso, se no sumo Bem não houver desde toda a eternidade uma produção atual e consubstancial e uma pessoa tão nobre quanto o Princípio donde procede por via de geração e espiração (isto é, se esta produção não vier dum Princípio eterno que produz eternamente o seu Igual, se não existir o mútuo amor, ou seja, se não houver uma pessoa gerada e uma espirada — o Pai, o Filho e o Espírito Santo), Deus não seria o sumo Bem, porque não se difundiria a si mesmo de maneira soberana.
A comunicação que às criaturas fêz no tempo é só um centro ou um ponto em comparação com a imensidade da Bondade eterna. Por isso nós podemos conceber uma comunicação maior — aquela, por exemplo, em que O que se difunde comunica a outro toda a sua substância e sua natureza. Deus, portanto, não seria o sumo Bem, se, na realidade ou ainda no nosso modo de pensar, carecesse de tal difusão.
Se podes, contempla, pois, com o olho da alma a pureza desta bondade, que é o Ato puro dum Princípio que ama caritativamente com um amor gratuito, com um amor devido e com os dois amores simultaneamente . Um amor que é pleníssima comunicação do sumo Bem por meio da inteligência e da vontade: pelo primeiro modo, produzindo o Verbo — em quem se dizem todas as coisas — e, pelo segundo, produzindo o Dom — em quem se doam todos os outros dons . A perfeita comunicabilidade do sumo Bem far-nos-á compreender que é necessário exista a Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Podes ver que, nestas Pessoas, a suma bondade exige uma suma comunicabilidade. Que a suma comunicabilidade exige uma suma consubstancialidade. Que uma suma consubstancialidade supõe uma suma semelhança e, por conseguinte, uma suma coigualdade, bem como uma coeternidade mútua, em virtude da qual uma Pessoa está necessariamente na outra por uma suma interpenetração e uma opera com a outra por razão da absoluta indivisão da substância, do poder e da atividade da beatíssima Trindade.
3 Contemplando, porém, a natureza divina, cuida-te bem de acreditares que compreendes o Mistério incompreensível. Restam ainda para a tua consideração, nestas seis perfeições, seis corolários que deixarão tua alma atônita de admiração.
Na Trindade, de fato, temos uma suma comunicabilidade lado a lado com o caráter próprio de cada Pessoa, a suma consubstancialidade lado a lado com a pluralidade de Pessoas, a suma semelhança lado a lado com a sua distinção pessoal, a suma igualdade lado a lado com a ordem, a suma coeternidade lado a lado com a sua processão, a suma intimidade lado a lado com a missão das Pessoas.
Quem não será arrebatado em admiração à vista de tantas maravilhas? No entanto, se elevamos os olhos de nosso espírito para a excelentíssima bondade divina, compreendemos com absoluta certeza que todas essas maravilhas se encontram na beatíssima Trindade. Porque, se existe comunicação suprema e difusão verdadeira, deve haver também verdadeira origem e verdadeira distinção. E assim como é o todo — e não uma parte — o que se comunica, segue-se daí que o mesmo todo possui aquele que recebe e aquele que doa. Por isso, Aquele que procede e Aquele que produz se distinguem pelas suas propriedades, mas na sua essência são uma mesma coisa. Se, portanto, são distintos pelas suas propriedades, é preciso admitir na Trindade as propriedades pessoais, a pluralidade das Pessoas, a processão de sua origem, a ordem não de tempo mas de origem e, enfim, a missão que se opera não por uma mudança de lugar mas pela produção dum efeito gratuito e pela Autoridade que possui Aquele que produz e manda sobre Aquele que é produzido e mandado. Mas, por serem estas três Pessoas uma coisa só na substância, mister se faz reconhecer na Trindade a unidade de essência, de forma, de dignidade, de eternidade, de existência e de imensidade.
Quando consideras estas coisas cada uma em si mesma, tens matéria que te capacita para contemplar a Verdade. Se, porém, as comparas umas com as outras, serão para ti fonte de profunda admiração. Se, pois, queres que teu espírito se eleve pela admiração a uma contemplação igualmente admirável, considera-as conjuntamente.
4 Isso nos ensinam os dois Querubins que se olhavam mutuamente. Nem deixa de ser mistério o fato de que se olhassem com as faces voltadas para o Propiciatório (cf. Êx 25,20). É a verificação da palavra do Senhor referida por S. João: “A Vida Eterna consiste em conhecermos a Ti, único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17,3). De fato, devemos admirar as características da divina essência e das divinas Pessoas não em si mesmas, mas também em comparação com a soberanamente admirável união de Deus e do homem na unidade de Pessoa de Jesus Cristo.
5 Se és um dos Querubins ao contemplares os atributos essenciais de Deus e se te admirares de que o Ser Divino é ao mesmo tempo o Ser primeiro e último, eterno e presentíssimo, simplicíssimo e máximo ou in-circunscrito, todo em todas as partes mas nunca contido, atualíssimo mas nunca movido, perfeitíssimo e sem superfluidade nem deficiências e, no entanto, imenso e ilimitadamente infinito, sumamente uno e soberanamente tudo, porquanto contém em Si todas as perfeições — toda a virtude, toda a verdade, todo o bem — volta, então, teus olhos para o Propiciatório e admira. Porque n'Ele o primeiro Princípio se uniu com o último. Deus se uniu com o homem formado no sexto dia (cf. Gn 1,26). O Eterno se uniu com o homem temporal, nascido duma Virgem, na “plenitude dos tempos” (cf. Gál 4,4-5). O Ser simplicíssimo se uniu com o ser essencialmente composto. O Ser soberanamente em ato se uniu com Aquele que extremamente sofreu e morreu. O Ser perfeitíssimo e imenso se uniu com o insignificante. O Ser sumamente uno e soberanamente tudo se uniu com uma natureza individual, composta e distinta das outras, isto é, com o homem Jesus Cristo.
6 Se és o outro Querubim na contemplação do que é próprio de cada Pessoa e te maravilhas de que na Trindade a comunicabilidade coexista com as propriedades pessoais, a consubstancialidade com a pluralidade, a semelhança com a distinção das Pessoas, a perfeita igualdade com a ordem de origem, a coeternidade com a produção, a mútua intimidade com a missão (porque o Filho foi enviado pelo Pai e porque o Espírito Santo, por sua vez, pelo Pai e pelo Filho, permanecendo, porém, sempre com Eles e sem se separar jamais d'Eles), olha então para o Propiciatório e admira-te de que em Jesus Cristo uma unidade de pessoa coexista tanto com uma trindade de substâncias como com uma dualidade de naturezas. Que um absoluto acordo coexista com uma pluralidade de vontades. Que uma unidade de atribuição do Nome de Deus e do homem à mesma pessoa coexista com uma pluralidade de propriedades. Que uma unidade de adoração coexista com uma pluralidade de nobrezas. Que uma unidade de glorificação coexista com uma pluralidade de dignidades. Que, enfim, uma unidade de dominação coexista com uma pluralidade de poderes.
7 Nesta consideração o espírito se ilumina perfeitamente, contemplando, como no sexto dia da Criação, o homem feito à imagem de Deus (cf. Gn 1,26). Com efeito, se a imagem é uma semelhança expressiva, quando nossa alma considera em Jesus Cristo — que é, por natureza, a imagem do Deus invisível — a nossa humanidade tão admiravelmente exaltada e tão inefavelmente unida, vendo reunidos numa só pessoa o primeiro e o último, o sumo e o ínfimo, o centro e a circunferência, o Alfa e o Ômega (cf. Apoc 1,8 e 5,1), a causa e o efeito, o Criador e a criatura — isto é, “o livro escrito por dentro e por fora” — então ela já chegou ao termo do seu itinerário. Agora chegou à perfeição de suas iluminações, como Deus chegou à perfeição de suas obras no sexto dia da Criação.
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