JEAN-LOUIS CHRÉTIEN – ALICERCES PARA HERMENÊUTICA DE LUCAS 12,49 POR ORÍGENES

- JLChretien2003*

Tendo isso em mente, é possível agora passar ao objeto em si, ou seja, à interpretação que Orígenes dá a Lucas 12,49 (*Vim para lançar Fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!*). Essa palavra de Jesus teve para ele uma força de chamado muito particular e um prolongado impacto. De fato, não apenas ele a cita, no que nos foi preservado de sua obra, cerca de vinte e cinco vezes, mas sobretudo ele a compreende com uma grande Riqueza e variedade de sentidos, que se complementam em vez de se repetirem.

Metodicamente, é importante notar que, na imensa maioria dos casos, essa frase é interpretante, e não interpretada. Entende-se por isso que Orígenes não questiona em primeiro lugar o que ela significa, e sobre a natureza desse fogo que Jesus veio lançar, mas que, comentando outras passagens bíblicas (principalmente da Bíblia hebraica) onde se fala de fogo, e de fogos muito diversos, ele usa essa frase de Jesus como uma chave para abri-las, ou como uma luz, pelo menos no horizonte, para interpretá-las. Isso, é claro, desdobra ou desenvolve, por sua vez, uma melhor compreensão da frase de Jesus em si, pois ao ver as diferentes portas que uma chave pode abrir, também entendemos melhor a natureza e os poderes dessa chave. Mas apenas por consequência, ou em um ato derivado. Isso será encontrado depois em muitos outros autores. Não há nada além do lógico e rigoroso em relação a uma leitura cristã da Bíblia: é Cristo que serve como fonte de inteligibilidade, mesmo que, com o tempo, ele esteja no fim e no cumprimento.

A importância dessa palavra para Orígenes também está ligada ao caráter central do fogo em seu pensamento e em sua simbólica. Henri de Lubac havia observado: para Orígenes, “em si mesmo como em sua ação, nenhuma imagem o (sc. Deus) descreve melhor, talvez, do que a imagem do Fogo”[]. Esse simbolismo é certamente bíblico, mas há para Orígenes, sem dúvida, uma poética do fogo. Como o quadro de compreensão dessa frase se estabelece para Orígenes?

O primeiro alicerce da interpretação é o incessante contato com o fogo que pertence à nossa humanidade, nossa experiência comum do fogo deste mundo. Apenas essa experiência pode dar sentido ao fato de Deus ser chamado de “fogo”, como no Deuteronômio (“teu Deus é um fogo consumidor” (Dt 4,24)), ou que sua ação, como na palavra de Jesus, seja espalhar o fogo. Certamente, como lembra o início do tratado Dos Princípios [], esse fogo Divino não é de forma alguma corpóreo, mas é precisamente do sentido do fogo para nós que devemos partir. Ora, as ações e os efeitos são extraordinariamente diversos, até opostos, e é isso que abre a pluralidade de sentidos possíveis desse “fogo” que Jesus veio lançar. A primeira dualidade é a da luz e do calor. “O fogo tem uma dupla propriedade: ilumina e queima. []” Não se deve apressadamente ver nessa dualidade a polaridade de uma ação positiva e de uma ação negativa, pois o calor em si pode ser benéfico ou maléfico: há um calor que amolece e preserva do endurecimento e da congelação, que mantém a vida, e um calor que destrói, consome e devora. Ainda assim, essa destruição, se for destruição do nocivo e do inútil, pode ser um benefício, como na prática agrícola das queimadas ou do eco-pastoreio. Essa queimadura também tem um sentido médico, como na cauterização de feridas. E o fogo também é o que cozinha nossos alimentos e os torna consumíveis, há um fogo que prepara e transforma, como aquele, em outras ordens, da metalurgia. A extraordinária pluralidade de usos do fogo abre, por sua vez, a polifonia de seus sentidos espirituais, e a exegese de Orígenes ativará essas diferentes possibilidades.

O segundo alicerce da interpretação é a natureza do locutor. Esse fogo, é o Cristo Salvador que afirma que veio lançá-lo sobre a terra: não podemos esquecer isso por um instante, e isso restringe a multiplicidade de sentidos do fogo nessa frase, pois o fogo que vem do Salvador só pode ser ele mesmo to sôtèrion pur, “o fogo salutar”, como diz Orígenes []. Um fragmento da Filocalia é muito claro: “Se o fogo que ele veio lançar sobre a terra não fosse salutar - e mais ainda, salutar para os homens -, o Filho do Deus Bom não teria dito isso.[]”

O terceiro alicerce da interpretação é de importância capital e separa como com uma espada a exegese patrística da exegese histórica, ou melhor, historicista, contemporânea. A quem essa frase se dirige? A que tipo de homens? Pois não há apenas diversos fogos com efeitos eles mesmos diversos, mas também diversos efeitos do mesmo e único fogo, dependendo de quem esse fogo atinge e inflama. Orígenes frequentemente diz isso a respeito do sol: “O sol parece ter uma dupla potência, uma pela qual ilumina, outra pela qual queima, mas conforme os objetos ou materiais expostos à sua ação, ou ele ilumina um objeto com sua luz, ou o escurece com seu ardor.[]” O tratado Dos Princípios, antes de extrair um ensinamento espiritual decisivo, também o diz à sua maneira: “É pela mesma e única potência de seu calor que o sol derrete a cera, mas seca e solidifica a lama.[]” O livro bíblico de Malaquias, de onde vem a expressão, que será um título de Cristo, de “sol da justiça”, também descreve a dualidade dos efeitos do mesmo Dia conforme aqueles que ele ilumina (Ml 3,18-21). Um adágio escolástico, de origem neoplatônica, diz que tudo o que é recebido, é recebido conforme o modo e a Medida de quem o recebe: todo dom é limitado pelo destinatário ou receptor. O homem só pode receber humanamente, mesmo que mais do que o humano lhe seja dado. Isso tem consequências hermenêuticas decisivas.

Para Orígenes, como para todo leitor orante, as palavras de Cristo não são insetos fixados e fossilizados no âmbar da história. Não se trata apenas, para compreendê-las, de considerar o que a exegese moderna chama de Sitz im Leben, esse lugar na vida que na verdade é apenas um lugar na morte, pois só envolve a situação histórica caduca e passada em que Jesus pronunciou essa frase, dirigindo-se em tal situação a tal público (embora tal análise, quando possível, deva certamente ser sempre tentada). Trata-se de incluir minha vida presente no horizonte de sentido dessa palavra que também se dirige a mim: esse “fogo” não tem o mesmo alcance para mim dependendo se sou justo ou pecador, ou pecador voltando-se para a justiça, e seu significado pode se transformar conforme eu deixo ou não deixo essa palavra me transformar. A polissemia também está ligada à diversidade dos ouvintes (o que não é de forma alguma relativista ou subjetivista, pois a pluralidade dos efeitos do mesmo fogo pode ser deduzida desse fogo mesmo). Como poderíamos falar do fogo sem que fosse a partir de nossa queimadura, e da diversidade de nossas queimaduras?

Essa questão conduz por si mesma ao quarto alicerce da interpretação. Como podemos chegar a ouvir em verdade, e assim, a partir daí, transmitir em verdade a outros, o que Jesus disse sobre o fogo? Só podemos compreender a palavra sobre o fogo se ela se tornar para nós uma palavra de fogo e um fogo de palavra, assim como não poderíamos compreender em verdade uma palavra sobre o amor sem deixá-la se tornar para nós uma palavra de amor, já que aquele que a profere é ele mesmo fogo, assim como é amor. O fogo chama o fogo, ele o chama em resposta, nessa resposta que formará apenas o lugar onde ele pode ser ouvido em verdade. Essa ligação do fogo e da palavra, assim como da escuta e da pregação, é central na exegese que Orígenes faz de Lucas 12,49.

Antes de estudá-la mais precisamente, é preciso ouvir Orígenes. Ele aborda frequentemente essa frase de Cristo segundo duas correlações bíblicas (Anne-Marie La Bonnardière falava, a respeito de Santo Agostinho, de “orquestrações”), que serão recorrentes depois. A primeira é a palavra do Salmo 38: “E em minha meditação um fogo se acende. (Sl 38,4 (Septuaginta))” A segunda é a frase dos discípulos de Emaús, quando Jesus, mal reconhecido como o Cristo ressuscitado, desaparece de seu olhar: “Não estava nosso coração ardendo dentro de nós, quando ele nos abria as Escrituras (Lc 24,32)?” Essas últimas palavras são decisivas em todos os aspectos, pois dão um fundamento escriturístico à queimadura que é a compreensão da Escritura: é a própria Escritura que diz que abri-la (no sentido de explicá-la) é liberar o fogo que queima nela e deixar-se queimar o coração, ou seja, o núcleo de nosso ser.

Falando do salmo citado, Orígenes diz: “Eu também medito as palavras do Senhor e as estudo; mas não sei se sou tal que, em minha meditação, um fogo jorre de cada palavra de Deus, incende meu coração e inflama minha alma para me fazer cumprir o que medito. E eu, hoje, vos dirijo as palavras de Deus, mas gostaria que, primeiro, em meu coração, e depois também nas almas daqueles que me escutam, elas se acendessem, como estavam essas palavras que Jesus pronunciava.[]” E Orígenes cita a frase dos peregrinos de Emaús, para chegar pouco a pouco a abordar a natureza desse fogo, com Lucas 12,49.