Tratado da Verdadeira Devoção à Santísssima Virgem
Retirado da tradução em português publicada pela Vozes (1984), segundo seleção indicada por James Cutsinger em seu excelente livro “Not of this World”.
256. Sétima prática. Os fiéis servos de Maria devem desprezar, odiar e fugir ao mundo corrompido, e servir-se das práticas de desprezo pelo mundo, que assinalamos na primeira parte. (V. nota 3 do n. 227. Cf. “L'Amour de la Sagesse éternelle”, cap. XVI.)
257. Além das práticas exteriores da devoção que vimos referindo, as quais não se deve omitir por negligência ou desprezo, na Medida que o estado e as condições de cada um o permitem, acrescentamos algumas práticas interiores assaz santificantes para aqueles chamados pelo Espírito Santo a mais alta perfeição.
Consiste, em quatro palavras, em fazer todas as suas ações por Maria, com Maria, em Maria e para Maria, a fim de fazê-las mais perfeitamente por Jesus, com Jesus, em Jesus e para Jesus. § I. Fazer todas as ações por Maria.
258. 1. É preciso fazer todas as ações por Maria, quer dizer, em todas, as coisas obedecer à Santíssima Virgem, e em tudo conduzir-se por seu espírito, que é o santo espírito de Deus. São filhos de Deus os que se conduzem pelo espírito de Deus: “Qui spiritu dei aguntur, ii sunt filii Dei” (Rom 8, 14). E os que pautam sua conduta pelo espírito de Maria são filhos de Maria e, por conseguinte, filhos de Deus, como já demonstramos; entre tantos devotos da Santíssima Virgem, só os que se conduzem por seu espírito é que são devotos verdadeiros e fiéis. Disse que o espírito de Maria é o espírito de Deus, porque ela jamais se conduziu por seu próprio espírito, e sempre pelo espírito de Deus, e este de tal modo a dominou que acabou tornando-se seu próprio espírito. Por isto, diz Santo Ambrósio: “Sit in singulis. . . etc. — Esteja a alma de Maria em cada um para glorificar o Senhor; esteja em cada um o espírito de Maria para que se regozija em Deus”. 1 Quão feliz é uma alma quando, a exemplo do bom irmão jesuíta Rodríguez, falecido em odor de santidade, é toda possuída e governada pelo espírito de Maria, que é um espírito suave e forte, zeloso e prudente, humilde e corajoso, puro e fecundo!
259. Para que a alma se deixe conduzir por este espírito de Maria, é mister: 1 Renunciar ao próprio espírito, às próprias luzes e vontades, antes de qualquer coisa: por exemplo, antes da oração, antes de dizer ou ouvir a santa missa, antes de comungar, etc. . . ; pois as trevas de nosso próprio espírito e a malícia de nossa vontade própria, se bem que nos pareçam boas, poriam obstáculo ao santo espírito de Maria. 2 É preciso entregar-se ao espírito de Maria para ser por ele movido e conduzido como ela quiser. Cumpre colocar-se e permanecer entre suas mãos virginais como um instrumento nas mãos dum operário, como uma citara nas mãos dum artista. Cumpre abandonar-se e perder-se nela, como uma pedra que se atira ao mar. E isto se faz simplesmente e num instante, por um só olhar do espírito, um pequeno movimento da vontade, ou verbalmente, dizendo, por exemplo: “Renuncio a mim mesmo, dou-me a vós, minha querida Mãe”. E ainda que não sintamos nenhuma doçura sensível neste ato de união, ele não deixa de ser verdadeiro, do mesmo modo que, se disséssemos, com desagrado de Deus: “Dou-me ao demônio”, com a mesma sinceridade, embora o disséssemos sem mudança alguma sensível, não pertenceríamos menos verdadeiramente ao demônio. 3 É preciso, de tempo em tempo, durante uma ação ou depois, renovar o ato de oferecimento e de união, e, quanto mais o fizermos, mais cedo nos santificaremos, e mais cedo chegaremos à união com Jesus Cristo, que segue sempre necessariamente a união com Maria, pois o espírito de Maria é o espírito de Jesus.
§ II. Fazer todas as ações com Maria.
260. 2 É mister fazer todas as ações com Maria, isto é, em todas as ações olhar Maria como um modelo acabado de todas as virtudes e perfeições, que o Espírito Santo formou numa pura criatura, e imitá-lo na medida de nossa capacidade. Cumpre, portanto, que, em cada ação, consideremos como Maria a fez ou faria se estivesse em nosso lugar. Devemos, por isso, examinar e meditar as grandes virtudes que ela praticou durante a vida, especialmente 1 sua fé viva, pela qual creu fiel e constantemente até ao pé da cruz, sobre o Calvário; 2 sua humildade profunda que a levou a esconder-se, a calar-se, a submeter-se a tudo e a colocar-se em último lugar; 3 sua pureza divinal, que jamais teve nem terá semelhante sob o céu, e por fim todas as suas outras virtudes.
Lembrai-vos, repito-o uma segunda vez, de que Maria é o grande e único molde de Deus próprio para fazer imagens vivas de Deus, com pouca despesa e em pouco tempo; e que uma alma que encontrou este molde, e que nele se perde, fica em breve mudada em Jesus Cristo, aí representado ao natural.
§ III. Fazer todas as ações em Maria.
261. 3 É preciso fazer todas as ações em Maria.
Para compreender cabalmente esta prática, é necessário saber que a Santíssima Virgem é o verdadeiro paraíso terrestre do novo Adão, de que o antigo paraíso terrestre é apenas a figura. Há, portanto, neste paraíso terrestre, riquezas, belezas, raridades e doçuras inexplicáveis, que o novo Adão, Jesus Cristo, aí deixou. Neste paraíso ele pôs suas complacências durante novos meses, aí operou suas maravilhas e aí acumulou riquezas com a magnificência de um Deus. Este lugar santíssimo é formado duma terra virgem e imaculada, da qual se formou e nutriu o novo Adão, sem a menor mancha ou nódoa, por operação do Espírito Santo que aí habita. É neste paraíso terrestre que está em verdade a árvore da vida que produziu Jesus Cristo, o fruto de vida; a árvore da ciência do bem e do mal, que deu a luz ao mundo. Há, neste lugar Divino, árvores plantadas pela mão de Deus e orvalhadas por sua unção divina, árvores que produziram e produzem, todos os dias, frutos maravilhosos dum sabor divino; há canteiros esmaltados de belas e variegadas flores de virtudes, cujo perfume delicia os próprios anjos. Ostentam-se neste lugar prados verdes de esperança, torres inexpugnáveis e fortes, habitações cheias de encanto e segurança, etc. Ninguém, exceto o Espírito Santo, pode dar a conhecer a verdade oculta sob estas figuras de coisas materiais. Reina neste lugar um ar puro, sem infecção, um ar de pureza; um belo dia sem noite, da humanidade santa; um belo sol sem sombras, da Divindade; uma fornalha ardente e contínua de caridade, na qual todo o ferro que aí se lança fica abrasado e se transforma em ouro; há um rio de humildade que surge da terra, e que, dividindo-se em quatro braços, rega todo este lugar encantado: são as quatro virtudes cardeais.
262. O Espírito Santo, pela boca dos Santos Padres, chama também a Santíssima Virgem: 1 a porta oriental, por onde o sumo sacerdote Jesus Cristo entra e vem ao mundo (cf. Ez 44, 2-3); por ela entrou da primeira vez, e por ela virá da segunda; 2 o santuário da Divindade, o reclinatório da Santíssima Trindade, o trono de Deus, a cidade de Deus, o altar de Deus, o templo de Deus, o mundo de Devis. Todos estes diferentes epítetos e louvores são verdadeiros em relação às diversas maravilhas e graças que o Altíssimo realizou em Maria. Oh! que Riqueza! que glória! que prazer! que felicidade poder entrar e habitar em Maria, em quem o Altíssimo colocou o trono de sua glória suprema!
263. Mas quão difícil é a pecadores, como somos, alcançar a permissão e a capacidade e a luz para entrar em lugar tão alto e tão santo, guardado não por um kerubim, como o antigo paraíso terrestre, mas pelo próprio Espírito Santo, que dele se tornou o Senhor absoluto e do qual diz: “Hortus conclusus soror mea sponsa, hortus conclusus, fons signatus” (Cânt 4, 12). Maria é fechada; Maria é selada; os miseráveis filhos de Adão e Eva, expulsos do paraíso terrestre, só têm acesso a este outro paraíso por uma graça especial do Espírito Santo, a qual devem merecer.
264. Depois que, pela fidelidade, obtivemos esta graça insigne, é com complacência que devemos morar no belo interior de Maria, aí repousar em paz, aí apoiar-nos com toda a confiança, aí seguramente esconder-nos e perder-nos sem reserva, a fim de que neste seio virginal: 1 a alma se alimente do leite de sua graça e de sua misericórdia maternal; 2 aí fique livre de suas perturbações, de seus temores e escrúpulos ; 3 aí esteja em segurança, ao abrigo de todos os seus inimigos, o demônio, o mundo e o pecado, que aí não têm jamais entrada; e por isso ela diz que os que operam nela, não pecarão: “Qui operantur in me, non peccabunt” (Eclí 24, 30), isto é, os que, em espírito, habitam a Santíssima Virgem, não cometerão pecado grave; 4 para que a alma fique formada em Jesus Cristo e Jesus Cristo nela; porque o seu seio, como dizem os Santos Padres é a sala dos sacramentos divinos, onde Jesus Cristo e todos os eleitos se formaram: “Homo et homo natus est in ea” (Sl 86, 5).
§ IV. Fazer todas as ações para Maria.
265. 4 É preciso fazer finalmente todas as ações para Maria. Porque, desde que nos entregamos completamente a seu serviço, é justo que façamos tudo para ela, como um criado, um servo, um escravo. Não a tomamos, porém, como fim último de nossos serviços, que é somente Jesus Cristo, mas como fim próximo, intermédio misterioso, e o meio mais fácil de chegar a ele. A exemplo de um bom servo e escravo, é preciso que não fiquemos ociosos, e sim que, apoiados por sua proteção, empreendamos e realizemos grandes coisas para tão augusta Soberana. É preciso defender seus privilégios quando alguém lhos disputar; sustentar sua glória, quando alguém a atacar; atrair todo o mundo, se for possível, ao seu serviço e a esta verdadeira e sólida devoção; falar, clamar contra todos os que abusem de sua devoção para ultrajar seu Filho; e ao mesmo tempo estabelecer esta verdadeira devoção. E como recompensa destes pequenos serviços, não devemos pretender mais que a honra de pertencer a uma Princesa tão amável, e a felicidade de, por meio dela, ficarmos unidos a Jesus Cristo, seu Filho, com um liame indissolúvel no tempo e na eternidade.
Glória a Jesus em Maria! Glória a Maria em Jesus! Glória a Deus somente!