Paul Nothomb — O SEGUNDO RELATO
Gen 2,23 E o Homem disse: Desta feita isso aí está! Substância de minha substância e carne de minha carne! Essa-aí se a chamará «alguma» (isha; fr. quelqu'une) — mulher e não chama — pois de «alguém» (ish; fr. quelqu'un) ela foi tomada, essa-aí!
Há aí três exclamações que parecem muito distintas não somente pelo tom mas por aquele que as exclamou, do Homem masculino, do Homem feminino ou dos dois, confundidos até aqui no texto sob o mesmo nome. E de qual é, deve-se sublinhar, a primeira tomada de palavra declarada nestes relatos. A primeira manifestação do discurso humano que relatam. De modo algum por acidente, certamente. Trata-se de proposições muito importantes, pelo menos a última, que não pode ser atribuída senão ao Homem masculino apenas, e que foi pronunciada, no meu entendimento, muito tempo depois das duas outras. Comecemos por examinar estas.
Desta feita, isso aí está! » traduz literalmente Z'T HPCM (pronunciado «zot hapaam») que nossas bíblias traduzem como as primeiras palavras de uma tirada única e contínua, compreendendo as três exclamações sucessivas que separei acima, e que Segond traduz: «Eis desta vez essa que é ossos de meus ossos e carne de minha carne! Se a chamará mulher porque ela foi tirada do homem». Ora Z'T, pronome demonstrativo do gênero feminino, se relacionando a HPCM, que quer dizer «desta feita» igualmente do gênero feminino, constitui com ele uma frase nominal, que se basta a si mesma, em um primeiro tempo. Ela exprime da maneira a mais espontânea possível, a euforia recíproca, o reconhecimento mútuo que experimentam um para com o outro e para com eles mesmos os dois novos amantes, surpreendidos de se tornarem subitamente o que são apesar de o ignorarem, e que se trocam e se repetem indefinidamente sua surpresa maravilhada cheios pelo inesperado que lhes acontece na Medida que, «só para ele» cada um de seu lado, dele ressentem o desejo. Desta feita, isso aí está! ».
«Substância de minha substância, e carne de minha carne», vem em seguida, e em um segundo tempo, me parece, depois de um longo atraso. A excitação se faz mais refletida. Esta «ajuda ao mesmo tempo semelhante e oposta a ele» cujo Homem masculino tinha tanta necessidade quanto o Homem feminino, e que não encontraram na visão dos animais, tiveram enfim, cada um ao contato do outro, ao alcance de suas mãos. E eles se dizem e se redizem para prolongar sua excitação e a relançá-la… (Ei porque prefiro minha tradução «Substância de minha substância» ao brutal «ossos de meus ossos» de Segond. Tanto mais que a palavra hebraica C(TS)M do texto quer dizer «mesmo» «si mesmo», sentido também concreto senão ainda mais que «ossos» onde a tradição vê uma alusão à famosa «costela»).
A «Bíblia das Origens» contém uma outra atestação da palavra C(TS)M em Gen 7,13 na expressão B C(TS)M HYWM HZH. Esta expressão que quer dizer «este dia mesmo» (literalmente «na identidade deste dia») é frequente no resto da Bíblia principalmente em Gen 17, 23, 26; Ex 12, 27, 41, 51 etc., onde C(TS)M tem sempre este sentido abstrato ao invés do sentido concreto de «osso».
Enfim em um terceiro tempo, e muito mais tarde sen dúvida a excitação muda de registro, de amorosa, de sensual, de natural se torna intelectual. É a última exclamação, sobre a qual o relato, creio quer sobretudo chamar a atenção e que não pode ter sido exclamada senão pelo Homem masculino apenas, posto que aí fala pela primeira vez no texto de seu «alter ego» em se servindo do gênero gramatical feminino. Lembremos que se o Homem (haadam) foi Criado «macho e fêmea» a palavra é gramaticalmente masculina, mesmo em hebreu moderno que designa uma mulher. É também o caso para «ser humano» em francês, «mensch» em alemão, etc.
A princípio, a história das línguas mostra que na origem os gêneros gramaticais, em número de dois ou três, não eram absolutamente ligados ao sexo. O gênero masculino, o gênero feminino são denominações de uso devidas ao fato que a maioria dos nomes de indivíduos aí são agrupados, segundo seu sexo, em um ou em outro, por razões morfológicas. Assim em hebreu os nomes dos indivíduos femininos são construídos frequentemente sobre os nomes dos indivíduos masculinos, pela adição de uma terminação vocálica ou silábica. Em linguagem de linguista, se dirá que os primeiros são «marcados» e os segundos «não-marcados». Os «não-marcados» são em princípio os mais antigos, aqueles que se aproximam mais da raiz, os «marcados», por exemplo por um sufixo, os mais recentes. O nome que o Homem masculino vai dar nesta exclamação retardada é um nome «marcado» típico pela relação a um nome «não-marcado» que se atribui, ele também, pela primeira vez. Um nome que não é o seu não mais no texto, e onde por excitação intelectual ou por uma espécie de vaidade sexista, se despersonaliza, mais ainda que sua companheira. Em hebreu, é muito chocante. A exclamação conte sete unidades gráficas, a seguir detalhadas:
LZ'T = a essa-aí.
Desde esta primeira palavra onde encontramos precedido da preposição L, o pronome demonstrativo do gênero feminino do início do versículo Z'T, o tom é dado. Designa desta feita o ser que está em face dele, próximo dele, em quem reconheceu seu «alter ego», e com quem dialogou da maneira mais íntima em se repetindo um ao outro «Substância de minha substância», carne de minha carne». E desta pessoa certamente única, só ela se encontrando com ele no jardim, fala subitamente como de «essa-aí». Porque este demonstrativo que afasta em lugar do pronome pessoal que se impôs entre eles, em suas exclamações precedentes, que os reuniam? Se ele tivesse dito «tu», «tu, te chamarei», etc., esta denominação à qual vai proceder teria sido totalmente diferente,
YQR' = será chamado.
Segond traduz «se a chamará». Mas a forma em hebreu é ainda mais impessoal. É a terceira pessoa do singular masculino do passivo do Verbo «qara» chamar, que logo não tem sujeito na frase, pois com um sujeito feminino a forma seria TQR', e não há nome masculino atrás deste «ele», que é o «ele» totalmente impessoal em francês «il pleut». Esta exclamação que começa por «a essa-aí será denominado» na medida que se dirige, ou pelo menos não pode ser entendida senão pela pessoa em questão, de qual fala como de «essa-aí», está em completo contraste com as duas precedentes, às quais
Segond a associa sem ver aparentemente a incongruência.
'(SH) H = (isha) «alguma».
Atenção, trata-se aqui de um nome supostamente novo, inédito, pronunciado pela primeira vez pelo Homem (masculino) que é considerado inventá-lo para chamar, como acaba de anunciá-lo, «essa-aí» que não tem justamente nenhuma necessidade de ser Chamada por um nome diferentemente dos animais que são seres genéricos, diversos e numerosos por natureza. E que não tem sobretudo necessidade de ser chamada por um nome abstrato, geral, antecipativamente «genérica» no jardim. Se ainda, o repito, tivesse chamado seu «alter ego», sua companheira, a «carne de sua carne» de um «pequeno nome» afetuoso, por exemplo '(SH) H «isha» justamente, mas no sentido incandescente, de «chama», derivado deste onde figura mais acima no texto…
OUTRAS EXEGESES: ISHA — LEO SCHAYA — CRIAÇÃO EM Deus
E (depois do «encontro» com as outras almas viventes aparecendo em seus corpos edênicos e objetivando tal ou tal aspecto fragmentário de Adão, este se encontrou enfim face a face com a última síntese de suas «exteriorizações», com a objetivação total de seu ser, chamada «mulher» em razão de sua qualidade receptiva e maternal, mas compartilhando com seu «esposo» o nome de «Homem», Adão, que designa não somente a espécie humana, mas ainda o Homem universal e Divino; também Adão vendo Eva pela primeira vez, se reconheceu ele mesmo — não somente sua feminidade , mas seu ser integral — nela, e eis porque) Adão disse: Eis desta feita aquele que é osso de meus ossos (etsem meatsamai, implicando o sentido de «essência de minha essência») e carne de minha carne (substância de minha substância, quer dizer: manifestação direta, etérea, edênica da materia prima)! A ela se chamará mulher (shah), porque ela foi tomada do homem (ish, o «macho», o aspecto masculino constituindo com o aspecto feminino: Adam, o andrógino primordial.