Paul Nothomb — OS RELATOS BÍBLICOS DA CRIAÇÃO
1,2 O futuro mundo era tohu-bohu: e da obscuridade acima de um um abismo e do vento — “Deus” — planando acima das águas.
Normalmente em hebreu o Verbo precede o sujeito. Aqui é o inverso e o verbo “ser” está no “finalizado”, o que indica que não se trata da proposição principal que se espera mas de um incidente à subordinada, descrevendo em qual situação a ação que ela anuncia se produziu. É um desmentido ao dogma da “Criação ex nihilo”. Antes da Criação afirma aqui a Bíblia, nada havia. Havia o “tohu-bohu” sem formas nem cores e as águas simbolizam a maneira indiferenciada, acima da qual plana um vento, alegoria da energia divina. O texto fala de “terra” 'R(TS) no sentido de “mundo” que traduzo por “futuro mundo” para compensar o imperfeito que substituo pelo mais-que-perfeito virtual do verbo “ser” que chamo seu “finalizado” (completo).
Este versículo toma partido na querela moderna sobre a existência, postulada pela Ciência clássica, de um mundo “objetivo”, independente da observação que dele se faça. Para o “construtivismo” um tal mundo, que chamamos a realidade, com suas riquezas, suas formas, suas cores, suas leis, é uma invenção do cérebro humano. Se para a Bíblia, acabamos de ver, existe algo antes da Criação, logo antes do Homem, consideremos que a “matéria eterna” não é um mundo. A Criação é a Criação do mundo, que começa por aquela da Realidade na cabeça do Homem que dá uma ordem, um sentido ao caos primordial que dele não tem nenhum. E mesmo se a “Queda” degradou esta Realidade da origem, é sempre a partir do que lhe resta, que o cérebro humano inventa hoje em dia ainda seu meio, que chamamos erroneamente a realidade, ou o mundo objetivo. O “construtivismo” seria portanto mais “bíblico”… Nothomb em outro livro, Le second récit, força uma tradução do verbo no imperfeito para destruir a tese da creatio ex nihilo, que não é bíblica. Criar, aqui, é dar um sentido ao caos preexistente, é uma operação mental. Este caos é evocado nos termos mais vagos possíveis, em contraste com a clareza dos conceitos que vão decorrer desde o versículo seguinte do princípio de Causalidade expresso no início.
Tohu waBohu, ou o clássico Tohu Bohu, são duas palavras que se acompanham e podem ser lidas com expressão de dois verbos significando “surpreendam-se e fiquem de boca aberta”, ou ainda “não tentem compreender”; a coisa é inconhecível sem sujeito conhecedor, que não existe antes da criação. O autor do texto sai aqui do estilo narrativo para se dirigir ao leitor. É a única vez.
Assim, neste livro Nothomb opta pela seguinte tradução: “O futuro mundo era. Não tente compreender: da obscuridade acima de um abismo, e do vento — Deus — planando acima das águas”.
- Souzenelle Gen I-2