===== MARTINS HORTO II ===== [[medievo:horto-do-esposo:start|Horto do Esposo]] — MARIO MARTINS Como escapar a este doloroso fluir das coisas amadas? Temos uma saída drástica: Destemporalizar-nos! Pensar, amar e realizar a nossa eternidade. Desenraizar-nos deste mundo e caminhar internamente para [[biblia:figuras:divindade:deus:start|Deus]] e para o que não muda, seguindo a nossa vocação essencial de peregrinos, de caminhantes. E aqui surge a função espiritual da dor, essa mão implacável que nos arranca do mundo e das coisas. [[evangelho-de-jesus:sermao-da-montanha:bem-aventurados:start|Bem-aventurados]] os cegos, os surdos, os infelizes, porque Deus os livrou das sombras enganadoras e das sereias malévolas! Resumimos as ideias-forças destas páginas, sem pormos em foco o que nelas há de indevidamente parcial. Expomos um modo de interpretar a vida e o tempo, não o criticamos. Contudo, devemos notar que tal mundividência está certa ao expulsar da nossa consciência a noção cômoda do repouso absoluto. Vamos agora desenvolver o que podemos classificar de «teoria da relatividade existencial» como norma de avaliação: Uma coisa existe (e, por conseguinte, vale) conforme o ponto de vista do observador e o ponto de relação a que ele a refere. Referidas ao infinito, as coisas deste mundo mais não existem do que existem, pois nelas a extensão da não-existência excede muito a da existência positiva. Em comparação de todo o mar, uma gota de água significa uma quantidade despicienda e dizemos: Isso não vale nada! E em relação à ânsia de Absoluto que nos atormenta, também nada vale tudo o que temos, por exemplo a glória terrestre. O tema da glória aparece bastante documentado por [[biblia:figuras:nt-personagens:maria:start|Maria]] Rosa Lida de Malkiel, em La Idea de la Fama en la Edad Media Castellana, um estudo que arranca de Homero, percorre os escritores do mundo antigo e se prolonga principalmente pela Idade Média espanhola, acabando no Condestável D. [[biblia:figuras:nt-personagens:discipulos:pedro:start|Pedro]] e em Jorge Manrique. A favor ou contra a glória deste mundo, a ânsia é a mesma e igual o tormento: não morrer de todo! Tal glória, observa o Horto do Esposo, consiste na lembrança de alguém no louvor dos homens. Expande-se no espaço e no tempo. Ser admirado em toda a parte e sempre, eis o nosso desejo íntimo. Porém, a terra he pequena toda". Além disso, os homens habitam somente uma pequena parte dela, aliás com desertos, mares e lagoas onde ninguém vive. E mesmo na parte habitada, nunca a fama de homem algum a enche toda. São desvayradas as línguas, diversos os costumes dos povos, louvando-se num lugar o que noutro se desconhece ou se reprova. Torna-se, pois, impossível à fama espalhar-se pelo mundo habitado. E ainda que a nossa glória fosse dum cabo ao outro da Terra, pouca importância teria. Com efeito, a Terra é tão pequena, segundo os astrônomos, que não passa dum ponto, em comparação do Universo estrelado. E aqui temos a glória do homem reduzida a um ponto perdido na amplidão dos céus. Perdida no espaço, fica também limitada no tempo, porque «a fama dura muy pouco ou nada, ê respeyto da eternidade». E mesmo no mundo, morre depressa a glória, pois depende dos homens inconstantes. Por fim, chega a morte triste e salgada e tudo perde o sabor, porque ela despreza a alta glória do mudo, nivela tudo e todos. Onde estão os ossos de Fabrício, cônsul de Roma, que é feito de Bruto e de Catão? Consumiu-os a terra. A glória já não lhes pertence nem lhes aproveita, pois não desceu com eles à sepultura. E ainda que descesse, nada valeria no outro mundo, onde há maiores coisas do que tal fama e onde eles, libertos do carcer terreal, também a desprezariam. A morte dá-nos a [[evangelho-de-jesus:logia-jesus:logia-jesus:medida:start|Medida]] justa das coisas. Marcados por ela, nada valem as dignidades e o poderio terreal, porque passam depressa. Breve e pequena he a vida de todo o poderio. A vida humana é vapor efêmero e a glória da carne assemelha-se às flores do feno: mal enverdecem, caem; erguem-se e são levadas. Como a palha que o vento levanta e o fumo que sobe, tal é o homem e o seu poderio. Assim como o orvalho que logo seca e as bolhas de espuma que «crecem pera aparecer e, ê crecendo, se acabam e desfalecem», assim morre o poder dos homens. Por isso dizia [[medievo:boecio:start|Boécio]] que as dignidades se assemelham às sombras que trespassam tostemente. Ilusório e pequeno é o poder humano. E os senhores do mundo e das honras não se tornam melhores por causa delas. Tudo o que nos parece belo pouco vale, em comparação dos bens perduráveis que encerram «dulçura grande e verdadeyra». Assim, as coisas transitórias degradam-se a sombras vãs, quase inexistentes. E porquê? Torna a responder o Horto do Esposo, desta vez a propósito da brevidade e pequenez das forças corporais: o pouco têpo he como nimi-galha, pois em todo poderio mortal o pouco he contado por nada e, como tal, deve ser desprezado. A aplicação do que chamámos «teoria da relatividade existencial», como norma de avaliação, supõe a idéia dominante do Absoluto e do eterno e supõe igualmente a consciência do fluir do tempo, impregnado pela morte: o tenpo nõ queda de andar. Na melhor das hipóteses, vem a velhice e em breve morreremos. A vivência da morte (permitam-nos o paradoxo) e do tempo a escoar-se domina estas páginas de aparência pessimista e que poderíamos intitular, em latim, de contemptu mundi. Tomar consciência da morte e do tempo eqüivale a tomar consciência dum mundo povoado por quase-sombras. Homens e animais, da terra nascem e em terra se tornam. Eles, os homens, deixam-se enganar pelos bens passageiros, pensando que são autênticos. Porém, não passam de sombras e imagens dum espelho. Deste modo, somos «êganados pella soõbra, ca tal he o homê como a soõbra» fugitiva e a flor que murcha. Folha arrebatada pelo vento, fumo que pouco dura, o corpo tem o estigma da sua origem, o pó, e do seu fim, o pó. Em suma, tudo é provisório para nós, nesta vida. Pegar e largar, largar e partir. Não vale a pena enfeitar as mesas com toalhas bordadas, facas com cabos de marfim, taças douradas, escudelas, talhadores e saleiros de prata. Não aproveita pintar os compartimentos das casas, alisar fremosamente os portaaes, atapetar o chão, compor o leito fofo de penas, cobri-lo de colchas de seda e cercá-lo de cortinas, pois está escrito que o homem, ao morrer, nada levará da glória da sua casa. E por isso, «sandeu he o homê pilingrim e estranho que, fora de sua terra, se trabalha e toma cuydado de aver morada sollepne cõ pinturas e con outros afeytamêtos notavees». Peregrinos e estranhos, nós todos estamos de viagem, a caminho da morte, pois é só um o fim de todos e a terra é mãe e sepultura dos homens. Saímos nus do ventre materno e nus voltaremos à terra. Onde estão os grandes letrados, os homens que davam festas, os corredores dos cavalos fremossos, os condutores de exércitos e os sábios? Servos e senhores, fortes e fracos, bonitos e feios, não se distinguem agora uns dos outros e a morte igualou-os. Morre o prazer, morre o corpo e apodrece. As riquezas não irão connosco. Por conseguinte, nada disso era verdadeiramente nosso. Não temos, a sério, o que deixaremos de ter, pois tal posse é outra ilusão. Estamos perante uma filosofia de desenraizamento e desapego, a restituir-nos à dura realidade de exilados, em busca do paraíso-por-achar. {{indexmenu>.#1|skipns=/^playground|^wiki/ nsonly}}