====== Doutrina de Addai ====== Ewa Kuryluk, "Santa Verônica e o Sudário" Eusebius terminou sua História da Igreja cerca de 325. A data exata da Doutrina de Addai (Addai = Addaeus = Thaddaeus), um relato mais longo e mais detalhado da correspondência Abgar-Jesus, ainda não foi estabelecida. Em 1848, a primeira versão incompleta do texto foi descoberta por W. Cureton em dois manuscritos do Museu Britânico, datados provavelmente dos séculos V ou VI e publicados nos Documentos Siríacos Antigos sob o título de A Doutrina de Addaeus o Apóstolo. Cureton acreditou ter encontrado Uma porção considerável do documento aramaico original que Eusebius cita como estando preservado nos arquivos de Edessa, e várias passagens dele, assinados por vários autores... que parece ser suficiente para estabelecer o fato da antiga conversão de muitos dos habitantes dessa cidade e, entre eles, do próprio rei, apesar de seus sucessores depois terem recaído no paganismo. O fragmento de Cureton confirma a existência de uma correspondência entre Abgar e Jesus, mas não narra a história dos contatos iniciais entre os dois homens, pois ele se inicia após a chegada de Addaeu's em Edessa e trata principalmente de sua atividade apostólica. George Phillips, o presidente do Queen's College de Cambridge, teve mais sorte que o curador do Museu Britânico. Remexendo entre os manuscritos da Biblioteca Pública Imperial de São Petersburgo, ele se deparou com o texto siríaco integral da Doutrina, mais do que o dobro do que havia sido publicado por Cureton. Sua Doutrina de Addai, o Apóstolo (1876) contém a narrativa sobre o retrato de Jesus executado por Hannan, o arquivista e pintor do rei, e a história da invenção da cruz "verdadeira" por Protonice (Petronice). Phillips reconheceu a lenda da invenção como uma interpolação posterior, mas, por outro lado, assumiu que seu achado era o texto que Eusebius tinha "diante de si quando escreveu o 13e capítulo do primeiro livro de sua História Eclesiástica". A crença de Phillips não foi compartilhada pelos outros. O estudioso alemão Richard Adelbert Lipsius empreendeu uma análise crítica da Doutrina de Addai e outros textos existentes que mencionam o relacionamento Abgar-Jesus, no seu Edessenische Abgar-Saze (1880), e chegou à conclusão que o relato de Eusebius precedeu a versão de Phillips que ele havia datado no meio do século IV. Enquanto Phillips insistia que a interpolação de Protonice (quase idêntica à história da invenção da cruz por Helena, a mãe do imperador Constantino) era a versão original da lenda, Lippius afirmava o contrário. Em seu Origens da Igreja Edessena e a Lenda de Abgar (1888), o teólogo francês L.-J. Tixeront tentou, o melhor que pôde, datar a história da cristianização de Edessa o mais anterior possível, insistindo que a Doutrina de Addai era o texto mais "levemente retocado e interpolado" visto por Eusebius. Mas admitiu que ambos, a história do retrato de Cristo e a de Petronice, deveriam ser encaradas como edições do "ano 380 ou mesmo 390". Dobschütz confirmou que a Doutrina de Addai foi escrita em cerca de 400, uma visão que prevalece no século XX, apesar de Steven Runciman, por exemplo, não concordar com ela em seu Algumas Observações sobre a Imagem de Edessa (1931). Locando o texto "em algum lugar da metade do século IV", ele o considerou como "definitivamente... pós-Nicêncio em sua teologia, o que quer dizer ter sido escrito após 325, apesar de por outro lado ele ser claramente anterior aos problemas religiosos do século V". Na Doutrina de Addai — cujo autor se identifica, no final, como Labubna, o escrivão do rei — a história começa três anos mais tarde que na História da Igreja de Eusebius. Abgar, o filho do Rei Ma'nu, contemporâneo do imperador romano Tiberius, envia em 12 de outubro de 343 da era selêucida (33 d.C.) dois de seus súditos de Hannan, seu "tabularius" e seu "sharrir", com importantes papéis do Estado ao procurador romano Sabinus, o governador da Síria, Fenícia e Palestina, residentes em Eleuterópolis. Em seu caminho de volta, os viajantes encontram uma grande multidão que, atraída pelas notícias dos milagres de Jesus, se dirigia a Jerusalém. Os três juntaram-se a eles e visitaram Jerusalém por dez dias. Durante esse tempo Hannan, o "guardião do arquivo", escreveu "tudo o que ele viu sobre o que Cristo fez" (Doutrina de Addai, p. 3) e, quando de seu retorno a Edessa, forneceu ao rei Abgar as anotações. Elas estimularam o interesse do rei e fizeram-no pensar numa viagem a Jerusalém. Mas ele fica com medo de entrar em conflito com os romanos e, ao invés disso, escreve uma carta a Jesus e a fornece a Hannan. O secretário deixa Edessa em 14 de março e chega a Jerusalém a 12 de abril. Ele encontra Cristo em casa em Gamaliel e lhe estende a carta. Ele começa com as palavras: "Abgar Ukrma (o negro) a Jesus, o Bom Médico, que apareceu no país de Jerusalém. Meu Senhor: Paz. Tenho ouvido falar de Vós e de Vossas Curas, e que não é por meio de remédios e raízes que Vós curais, mas que por Vossas palavras Vós abristes os olhos dos cegos". O rei adverte Jesus que "os judeus murmuram contra Vós e vos perseguem, e procuram até mesmo crucificar-vos". (Doutrina de Addai, p. 4); e o convida então para vir a Edessa. Jesus recebe a carta e envia a Hannan uma mensagem verbal. Seu conteúdo coincide em grande parte com o texto relatado por Eusebius e o documento siríaco "anexado"; nele Cristo explica que: Para o que fui enviado aqui está terminado e estou subindo para o meu Pai, que me enviou, e quando tiver subido até Ele, enviarei a Vós um de meus discípulos que curará a doença... e vos restaurará a saúde; e todos que estiverem convosco, ele os converterá à vida eterna; que Vossa cidade seja abençoada, e nenhum inimigo se tornará novamente dono dela, para sempre. Enquanto Jesus fala, Hannan pinta seu retrato. Então o arquivista-artista retorna a Edessa, relata ao rei tudo o que ouviu de Jesus, e lhe dá o retrato, que Abgar recebeu "com grande alegria, e colocou... com grande honra em um de seus palácios". (Doutrina de Addai, p. 5) O episódio da imagem ilustra a transição da tradição lingüística para a icônica. O relato de Eusebius é focalizado na carta de Jesus — a palavra escrita de Deus. A Doutrina de Addai, por outro lado, introduz o retrato de Deus e reduz o significado da comunicação divina trocando a mensagem manuscrita pela falada. A aceitação da imagem de Cristo requer a rejeição da representação pagã. Este aspecto é aventado na seguinte história de Protonice, que vai a Jerusalém após ter "negado o paganismo de seus pais... e as imagens idolatradas que ela havia adorado". (Doutrina de Addai, p. 11, e em várias outras passagens). O texto estabelece também uma conexão entre representação pictórica e encarnação. Addai, "o discípulo de Jesus Cristo... que desceu dos céus, foi vestido com um corpo e tornou-se homem" (Doutrina de Addai, p. 18), explica a natureza de seu professor: Pela vontade que O inclinou ao nascimento de uma virgem, também O fez condescender ao sofrimento da morte, e Ele se submeteu à majestade de Sua exaltada divindade, que estava com seu Pai na eternidade, Ele, de quem os Profetas da antiguidade falavam em seus mistérios; e eles representavam imagens de seu nascimento, e do Seu sofrimento e Sua ressurreição, e Sua ascensão ao Seu Pai... Seu corpo é a vestimenta pura de sua gloriosa divindade, através da qual somos capazes de ver Sua invisível Excelência. (Doutrina de Addai, p. 19) Jesus devia ser reconhecido como o novo "cabeça do mundo, e assim a ruptura subseqüente do cristianismo é relacionada a essa parte do corpo: Aggai, o sucessor de Addai, e o fabricante de correntes e sedas na corte do rei, recusa-se a produzir uma tiara para o filho de Abgar, que havia se convertido novamente ao paganismo, e é morto por isso. Censurando tanto os judeus, que insistem num Deus invisível, quanto os pagãos, que rezam a outras "cabeças", a lenda siríaca prepara o terreno para a transformação do retrato de Jesus num acheiropoietos miraculoso, enfatizando que o retrato de Deus é "não feito pelas mãos". Addai diz à multidão edesse-na que a razão pela sua incapacidade de curar algumas pessoas com a palavra de Cristo é o culto delas pelo "trabalho de suas mãos"; ele as admoesta a "fugir... de coisas feitas e criadas... que de nome são somente... chamadas de deus... e que cheguem perto Dele, que em Sua natureza é Deus... e não é feito como seus ídolos, e também não é uma criatura, e uma obra de arte" (Doutrina de Addai, pp. 26-7).