===== O PECADO ORIGINAL NA PRÉ-EXISTÊNCIA I (HCOTC) ===== A pré-existência das almas compreende-se unicamente pelo pecado original que nela se situa, pois somente completada por este último pode se opor aos ataques marcionitas contra [[biblia:figuras:divindade:deus:start|Deus]] criador, mostrando na diversidade das situações em que se acham as criaturas racionais um resultado das decisões de seu livre arbítrio. Notemos também que a doutrina origeniana do pecado original não se reduz ao que vamos dizer e contém afirmações que em sua época eram tradicionais e seguirão sendo todavia por muito tempo: a impureza da criança em seu nascimento fundamenta para ele a necessidade do batismo e justifica especialmente o batismo das crianças; tal impureza está ligada ao ato carnal que lhe deu origem, etc. É esta uma explicação entre outras do pecado original relacionado com a pré-existência. Recordemos que as criaturas racionais estavam absortas na contemplação de Deus como estarão os [[evangelho-de-jesus:sermao-da-montanha:bem-aventurados:start|Bem-aventurados]] na restauração final. Formavam uma unidade, uma Igreja, cuja cabeça e Esposo era [[biblia:figuras:nt-personagens:cristo:start|Cristo]] em sua humanidade pré-existente. A queda vem a deslocar essa Igreja e por fim a tal unidade. Sua origem está expressada de duas maneiras, ambas em estreita relação com a prática da vida espiritual. Primeiro, a sacietas, a saciedade da contemplação divina. Este termo latino traduz o grego kóros: não significa que a infinitude divina possa de alguma maneira saciar a uma criatura, mas sim, como o demonstrou em uma análise do vocábulo Marg. Harl, kóros e sacietas expressam o fastio da contemplação, algo comparável com a "acedia", que para os monges orientais é uma das grandes tentações do monge, um fastio do espiritual e finalmente de todas as coisas. Uma segunda explicação parte de uma etimologia clássica entre os gregos, ainda que muito provavelmente artificial, que relaciona [[philokalia:philokalia-termos:psyche:start|psyche]] — alma — com psychos — frio — . Deus é fogo e calor. Ao distanciar-se de Deus as inteligências se esfriaram, tornaram-se almas. Há pois uma diminuição de fervor e de caridade. Mas, esta degradação da inteligência implica graus na alma porque nem todas caíram ao mesmo nível. Daí provem a diversidade das criaturas racionais, suas diferentes ordens, anjos, humanos e demônios, e dentro de cada ordem sua contínua diversidade. Assim, a queda original não é uma causa imediata, mas sim motivo da diversidade do mundo sensível criado por Deus com posterioridade à ela. De todos os modos, a queda se deve a uma decisão do livre arbítrio da criatura racional, o qual é uma de suas características essenciais e que, segundo a doutrina constante de [[ate-agostinho:origenes:start|Orígenes]], Deus respeita e não força jamais, ainda que a solicite insistentemente. Na exposição da regra de fé do prefácio do Tratado dos Princípios lemos: > *"O ponto seguinte também está definido pela predicação eclesiástica: toda alma racional está dotada de livre arbítrio e de vontade...Há que compreender, portanto, que não estamos submetidos à necessidade e que não somos forçados de todas maneiras nem a nosso pesar a obrar o mal ou o bem. Dotados como estamos do livre arbítrio, algumas potências podem nos empurrar para o mal e outras ajudar-nos a obrar nossa salvação; entretanto não estamos constrangidos pela necessidade para obrar o bem ou o mal. Pensam o contrário os que dizem que o curso e os movimentos das estrelas são a causa dos atos humanos, não só daqueles que não dependem do livre arbítrio como também dos que estão em nosso poder."* Frente ao determinismo pagão da astrologia e das filosofias inspiradas nela, frente também ao determinismo gnóstico dos "hereges das naturezas". Orígenes permanecerá através de todo seu pensamento um intrépido paladino do livre-arbítrio do humano, que é uma das ideias-centrais de sua teologia e, em diálogo com a ação divina, um dos motores de sua cosmologia. Foi-lhe consagrado um dos grandes capítulos do Tratado dos Princípios que foi conservado em grego na Filocalia (não confundir com a [[philokalia:start|Philokalia]]): depois de uma reflexão de ordem filosófica, esforçou-se por separar as objeções que se lhe poderiam fazer a partir de textos escriturísticos: este capítulo teve uma influência considerável e o Do livre arbítrio de Erasmo se inspira amplamente nele. A queda foi universal e alcançou todas as inteligências? Uma alma se livrou certamente, a que estava unida ao [[biblia:figuras:verbo:start|Verbo]], pois Orígenes diz que ela é impecável, transformada no Verbo, como o ferro submergido no fogo se torna fogo. Mas, não existem outras que tenham escapado da queda? a maioria dos autores o negam, partindo de um a priori: a queda deve ter sido tão universal quanto a [[philokalia:philokalia-termos:apokatastasis:start|apokatastasis]] final. No último capítulo deste volume veremos se é exato dizer que Orígenes professa com clareza uma apokatastasis universal. Em quanto à universalidade da queda, isso parece estar bem desmentido por alguns textos do Tratado dos Princípios que, como o demonstrou M. Simonetti, supõem-se que algumas inteligências escaparam da queda. Pensa Orígenes que entre as criaturas angélicas que não pecaram, algumas se encarnaram, como Cristo, não à consequência de um pecado, mas sim para servir aos homens e ajudar na missão do Redentor. O Comentário sobre João formula uma hipótese deste gênero a propósito de [[evangelho-de-jesus:evangelho-personagens:discipulos-de-jesus:dois-joao:joao-batista:start|João Batista]] e fiando-se de um apócrifo, A [[oracao:start|oração]] de José, e também de alguns patriarcas do [[biblia:at:start|Antigo Testamento]]. O Comentário aos Efésios de [[ate-agostinho:jeronimo:start|Jerônimo]], amplamente inspirado no de Orígenes, reproduz a propósito de Ef. 1, 4 a mesma opinião a respeito dos profetas e dos santos do Antigo Testamento enviados à terra em corpos terrestres sem haver pecado, para ajudar à Redenção. Neste caso estão todos os anjos para Orígenes ou somente seus superiores, havendo pecado os demais ainda que menos profundamente que os homens e os demônios ? É difícil dizê-lo. O Tratado dos Princípios afirma que os anjos obtiveram por méritos próprios suas funções, mais altas ou mais baixas, entre os que mandam ou entre os que obedecem: o contrário teria correspondido à uma parcialidade indigna do Criador ? Pode resultar estranho esta insistência de Orígenes sobre o mérito, que provém da polêmica anti-valentina. De todos modos, isto supõe que entre os anjos exista diversidade de méritos. Deve-se à um progresso a partir do estado comum, que alguns textos não excluem, ou pelo contrário à diversos graus da queda ? Uma [[philokalia:philokalia-termos:homilia:start|homilia]] sobre Números, apoiando-se em 1 Cor 6, 3 : "Não sabeis que julgaremos os anjos ?", mostra os anjos da guarda julgados juntos com seus pupilos humanos no Juízo final, o qual supõe que possam pecar. Talvez até as funções de anjo da guarda, já dos indivíduos, já das nações ou das Igrejas, e até dos diversos reinos da natureza, representem para eles uma espécie de castigo misericordioso por causa da queda primitiva. Com os anjos tem que se mencionar os astros. Pois, o Tratado dos Princípios apresenta, seguindo a tradição filosófica, mas sempre a modo de hipótese, os astros como seres animados e racionais, cujas almas preexistiram e foram submetidas à vaidade dos corpos visíveis para serviço dos homens. Eles também seriam suscetíveis de pecar. Sua entrada no corpo é consequência de uma falta, como parecem pensar muitos intérpretes de Orígenes, antigos ou modernos, ou ocorreu só para o serviço do homem, sem desmérito de sua parte ? O texto de Rufino parece mais estar bem a favor da segunda solução. {{indexmenu>.#1|skipns=/^playground|^wiki/ nsonly}}